Qual era minha lembrança mais antiga?, me perguntei, olhando para a
folha em branco à minha frente. Uma dentre muitas. Aquela vez em que
Margaret e Claire me puseram num carrinho de boneca e saíram me
empurrando pela casa em alta velocidade. Eu ainda me lembrava de mim mesma
espremida no carrinho minúsculo, ofuscada pelo sol de verão, e dos rostos
risonhos de Margaret e Claire, seus cabelos castanhos parecendo fôrmas de
pudim, o corte que todas usávamos. Lembrei-me do quanto odiava meu cabelo e
desejava ardentemente ter cachos longos e dourados, como os da minha vizinha
Angela Kilteather.
Ou daquela vez em que corri atrás de Margaret e Claire com minhas
perninhas rechonchudas, tentando acompanhar seu passo, só para ouvir delas:
"Vai prá casa, você não pode vir, é muito criança."
Ou de como cobiçava as sandálias azul-claras de verniz de Claire, que
tinham uma tira em volta do tornozelo, outra ao redor do dedão e — o melhor de
tudo — uma flor branca de verniz em cima da tira ao redor do dedão.
Talvez minha lembrança mais antiga fosse a do dia em que comi o ovo
de Páscoa de Margaret e ficamos todos trancados fora de casa.
Na mesma hora, foi como se as luzes na Sala de Leitura diminuíssem
de intensidade. Ah, meu Deus, eu ainda me sentia estranha, mesmo vinte e três
anos depois, ao me lembrar daquele dia. Sem dúvida, não parecia ter sido vinte e
três anos atrás, parecia ter sido ontem.
Era um ovo de Páscoa da Beano, eu me lembrava claramente. Acho
que não fazem mais Beanos, pensei, tentando me distrair da dolorosa
lembrança. Se não me falhava a memória, os Beanos haviam entrado em
extinção na década de setenta. Bem, eu sempre podia tirar isso a limpo com
Eamonn. Eram lindos, como os Smarties, mas com cores muito mais brilhantes,
muito mais vivas.
Margaret vinha guardando o ovo de Páscoa desde abril, e àquela altura
já estávamos em setembro. Era esse o gênero de irmã que Margaret fazia. Seu
dom de amealhar me atormentava.
Eu era o extremo oposto. Quando ganhávamos nossos sacos de
bombons nos domingos, eu mal podia esperar a hora de arrancar o papel para.
enfiá-los na boca. E, quando terminava, os dela ainda estavam intactos. Então, é
claro, eu me arrependia por não ter guardado os meus e queria os dela.
Durante meses, o ovo de Páscoa ficou no alto do armário, piscando
para mim e me ofuscando com seu papel vermelho e reluzente. Eu o cobiçava o
tempo todo, com cada fibra de meu corpinho gorducho. Estava obcecada por ele.
— Quando você acha que vai comer o ovo? — eu perguntava, tentando
fingir que não dava a mínima. Que não me sentia como se fosse morrer, se não
fosse nos próximos cinco minutos.
— Ah, sei lá — dizia ela, displicente, com o autocontrole de uma
perfeita neurótica.
— É mesmo? — tornava eu, simulando minha indiferença com o maior
rigor. Era de importância vital que ninguém ficasse sabendo o que a gente
realmente queria. Porque, se soubessem, aí é que fariam questão de não dar.
Quem pede, não ganha, era o que a experiência tinha me ensinado.
— Posso até nem comer — cismou. — Posso até jogar fora.
— Bom — disse eu, medindo as palavras, prendendo o fôlego à idéia de
conseguir o que queria —, não precisa jogar fora, eu como ele prá você.
— Você quer comer ele?
— Quero — disse eu, me esquecendo de dissimular.
— Ah-ha! Quer dizer então que quer comer ele.
— Não! Eu...
— Você quer, é o óbvio. E o Santo Deus diz que, porque você pediu, se
tornou indigna dele. Não teve humildade, entendeu?
Aos cinco anos e três meses de idade, Margaret era uma sumidade em
teologia.
Eu sabia muito pouco a Seu respeito, a não ser que Ele era um velho
muito malvado, que se comportava como todas as pessoas que faziam parte do
meu mundo. Se a gente queria uma coisa e pedia, tornava-se automaticamente
inapta a consegui-la. Eu achava que a única maneira segura de se viver com
Deus por perto era querendo as coisas que não se queria.
Cresci à sombra de um Deus cruel.
Cresci à sombra de uma irmã cruel.
Eu ficava confusa com seu autocontrole, confusa com minha própria
fraqueza. Por que eu queria seu ovo de Páscoa tão desesperadamente, e ela não
se importava com ele nem um pouco?
No dia em que finalmente perdi a cabeça, não tinha intenção de comêlo.
Não o ovo inteiro, pelo menos.
Só queria me empanturrar com os confeitos que vinham no saquinho
de celofane dentro dele. O plano era embalar novamente o ovo de Páscoa no seu
papel laminado vermelho, guardá-lo de volta na caixa e tornar a colocá-lo em
cima do guarda-roupa, quase intacto. E, se Margaret resolvesse comê-lo e desse
por falta do saquinho de confeitos, pensaria que o ovo já viera sem ele da fábrica.
Eu até poderia dizer que o meu também viera sem confeitos, pensei, encantada
com minha astúcia. Esse argumento certamente daria um toque extra de
autenticidade ao golpe.
A gestação da idéia do roubo foi lenta e rancorosa. Escolhi a ocasião
com todo o cuidado.
Claire e Margaret estavam na escola; a professora de Margaret dizia
que nunca encontrara uma menina tão bem-comportada em seus trinta e seis
anos de magistério. Anna dormia com seu bumbum cheiroso no berço, e mamãe
estava pendurando roupas no varal, uma aventura que em geral implicava várias
horas de ausência, pois ela ficava conversando no jardim com a Sra. Kilfeather,
mãe da tal Angela dos cachos dourados e angelicais.
Arrastei uma cadeira amarela de vime até o grande e pesado armário
marrom (os armários planejados, brancos, de design moderno, mal-acabados e
construídos com material ordinário, ainda eram coisa do futuro. Tais armários
eram "o último grito", e nossa casa não tinha nenhum grito, além dos nossos.)
Encarapitei-me na cadeira e fiquei na pontinha dos pés, esticando os
braços ao máximo para alcançá-lo. Não cansava de repetir para mim mesma que
Margaret não queria o ovo de Páscoa. Estava quase me convencendo de que lhe
prestava um favor. Finalmente, inclinei-o com a mão e ele despencou em cima de
mim.
Carreguei a caixa comigo e coloquei-a no chão entre minha cama e a
parede. Desse jeito, se mamãe entrasse, não me pegaria em flagrante.
Houve um momento de medo, antes de eu puxar o papelão. Mas, a
essa altura, já estava além das minhas forças resistir. Minha boca estava cheia
d'água, o coração aos pulos, a adrenalina a mil. Eu queria chocolate e ia ter.
Não foi fácil abrir a caixa. Margaret deixara até o durex intacto, pela
madrugada! Isso queria dizer, concluí, chocada, que não o abrira nem para dar
uma lambida.
Com o maior cuidado, as mãozinhas gorduchas suando, levantei a
pontinha do durex. Mas não adiantou, o papelão veio junto. Decidi que estava
entusiasmada demais para me importar e que me preocuparia com isso mais
tarde.
Cheia de reverência, ergui a bola de chocolate brilhante e vermelha de
dentro da caixa, e o cheiro atingiu minhas narinas. Embora estivesse
desesperada para começar a enfiar pedaços de chocolate na boca, me obriguei a
descascar cuidadosamente o papel laminado. Uma vez removido, as duas
metades se separaram, expondo o ruidoso saco de celofane cheio de confeitos
que se aninhava em seu interior. Como o Menininho Jesus na manjedoura,
pensei, empolgada.
Sinceramente, eu planejara comer apenas os confeitos, mas, quando
terminei de comê-los, quis mais. Mais. MUITO MAIS!
Por que não?, me perguntei. Tem chocolate aí de sobra. E, de mais a
mais, ela nem mesmo quer ele.
Não posso, me compenetrei, ela vai me matar.
Pode, sim, me bajulei, ela não vai nem notar.
Tá bem, pensei, chegando rapidamente a um acordo comigo mesma,
posso comer uma das metades, embrulhar a outra de novo com o papel
vermelho, colocar a caixa de volta em cima do armário com o lado perfeitinho
para a frente, que Margaret nunca vai ficar sabendo.
Entre alegre, decidida e orgulhosa por ter sido tão esperta, empunhei
uma das metades do ovo de Páscoa de Margaret e, um pouco ofegante de medo e
antegozo, parti-a ao meio. Eufórica, o sangue pulsando de satisfação, enfiei um
pedaço na boca, mal sentindo o gosto do chocolate antes de engoli-lo.
Mas esse frenesi não durou muito.
Quase na mesma hora em que o último bocado desapareceu, a
vergonha chegou. Torturada pelo sentimento de culpa, embrulhei rapidamente a
outra metade com o papel laminado. Não queria mais olhar para ela. No entanto,
por mais que tentasse, não conseguia desamarfanhar e esticar o papel brilhante.
Quando tentei alisá-lo com a unha, ele rasgou! Minha fome de açúcar fora
saciada. Mas o medo, que não podia conviver com essa fome, reapareceu.
Profundamente arrependida, desejava não ter tocado em nada.
Desejava nunca ter ouvido falar em ovos de Páscoa. Margaret saberia. E, mesmo
que não soubesse, Deus sabia. Eu iria para o Inferno. Onde arderia e chiaria
como as batatas que mamãe fritava para nós toda sexta-feira.
Enjoada da sobrecarga de chocolate e da nostalgia dos dez minutos
anteriores ao crime, quando o ovo ainda estava intacto, tornei a ajeitar o papel e
recoloquei a outra metade na caixa. Mas não havia jeito de ele ficar em pé, pois
faltava a outra metade para apoiá-lo contra os fundos da caixa.
E agora que o durex estava com metade do papelão da caixa grudada
nele, não queria colar mais.
Fiquei com muito medo. Com muito, muito medo. Teria dado qualquer
coisa para que o tempo retrocedesse a algum momento anterior à primeira
dentada. Qualquer coisa.
Por favor, Deus, me ajude, rezei. Vou ser boazinha, nunca mais vou
fazer uma coisa dessas de novo. Dou meu ovo de Páscoa no ano que vem para
ela. Dou meu saco de bombons para ela todo domingo, mas não deixe que me
apanhem.
Por fim, consegui enfiar os restos do ovo de Páscoa pelo buraco na
frente da caixa. Fechei-a e coloquei-a de volta no alto do armário.
E me convenci de que estava ótima. A parte da frente estava perfeita,
ninguém diria que a de trás já não existia mais. Ocorreu-me, então — e a
imagem não me desagradou —, que o ovo de Páscoa de Margaret era exatamente
como o homem que encontraram no pântano de 0'Leary com o crânio afundado.
A descoberta deixara nossa rua em polvorosa, e pelo menos mais quatro ruas de
cada lado. Nossa rua, no entanto, era o centro do bafafá, porque um de nossos
cidadãos, o pai de Dan Bourke, encontrou o cadáver. A princípio, pensou que o
homem estivesse apenas tirando um cochilo, porque seu rosto parecia normal.
Mas, quando o Sr. Bourke o levantou, seus miolos escorreram-lhe pelas costas.
Dan Bourke disse que foi uma coisa tão nojenta, que seu pai vomitou.
Não era para ficarmos sabendo da história. Ouvi mamãe dizer "Shhh,
as paredes têm ouvidos", levantando as sobrancelhas para nós. Mas Dan
Bourke, que estava por dentro, contou-nos tudo. Disse que a arma do crime fora
um atiçador de lareira, e a partir daí passei a nutrir um grande interesse pelo
atiçador lá de casa, me perguntando se também podia fazer os miolos de um
homem escorrerem pelas suas costas. Perguntei a mamãe e ela disse que não,
que o nosso atiçador era um atiçador de boa família.
O que não nos impediu de brincar de "Homem morto no pântano de
0'Leary" com o dito-cujo durante parte do verão. Havia muito pouco a fazer. Uma
de nós fingia bater na cabeça da outra com o atiçador, e então a que levara o
golpe tinha que ficar deitada durante séculos, e uma terceira pessoa tinha que
fazer o papel do Sr. Bourke, para aparecer e vomitar. Uma vez, Claire fez a cena
do vômito tão bem, que vomitou de verdade.
Foi um barato.
Quando mamãe descobriu a brincadeira, tomou o atiçador de nós, e
fomos obrigadas a substituí-lo por uma colher de pau, o que deixava muito a
desejar em termos de autenticidade.
Por acaso, o confisco de nosso atiçador coincidiu com a aquisição dos
Shaws de uma piscina inflável, época em que Hilda Shaw se viu subitamente
inundada por convites de candidatas ao posto de suas novas melhores amigas.
Claire, Margaret e eu nos candidatamos. Para variar, nem cheguei a
figurar na lista das pré-selecionadas. Claire e Margaret chegaram até a segunda
entrevista, e então receberam o envelope manilhado participando-lhes que
estavam entre as candidatas aprovadas.
Assim, enquanto nadavam com seus maiozinhos cor-de-rosa, com os
traseiros debruados por três fieiras de babadinhos, tive que ficar em casa, no
quintal, excluída, como sempre., e brincar de Chateia-a-Mãe.
— Mamãe, por que o céu é?
— Por que o céu é o quê, Rachel?
— Não, por que o céu é?
— Você não pode perguntar por que o céu é, não faz sentido.
— Por quê?
— Porque não.
— Por quê?
— Pára de me perguntar por quê, Rachel, está me chateando.
— Por quê?
— Vai brincar com Claire e Margaret.
— Não posso, elas 'tão na piscina inflável de Hilda Shaw. Pausa.
— Mamãe, por que a grama é?
— Por que a grama é o quê, Rach...?
Enfim, achei que o ovo de Páscoa restaurado de Margaret parecia
muito direitinho no alto do guarda-roupa. Mais calma, fui dar uma espiada em
mamãe. Ela ainda estava no jardim, conversando com a Sra. Nagle, do outro
lado. Do que será que elas falam?, eu me perguntava. E como é que conseguem
fazer isso durante tanto tempo? Gente grande era engraçada. Principalmente por
nunca sentir vontade de quebrar as coisas. Ou beliscar os outros.
Fiquei ali, agarrada na saia de mamãe, encostada nela. Achando que
nunca mais iria embora, resolvi apressar as coisas para receber um pouco de
atenção, e reclamei, "Mamãe, tô com vontade de fazer cocô", embora não
estivesse.
— Ah, que inferno! — ela exclamou para a Sra. Nagle. — Não tenho um
segundo de paz nessa casa. Vamos! — Mas, assim que entramos em casa, ela se
ocupou de Anna. Eu ainda não tinha conseguido chamar sua atenção.
Com quem ou com o que iria brincar? Do nada, a lembrança da outra
metade do ovo de Margaret se acendeu. Pertinho, bastava subir a escada. A
alguns minutos dos meus pés. Tão perto. Seria tão fácil, apenas...
Não! Não devo, relembrei a mim mesma.
Mas por que não?, adulou outra voz. Vai lá, ela não vai se importar.
E lá fui eu de volta para a cena do crime. Rumo ao armário, para cima
da cadeira, para o chão com o ovo de Páscoa.
Dessa vez, comi tudo que restara dele, até não sobrar nada para pôr
dentro da caixa à guisa de fachada. O pavor e a vergonha voltaram, mas com
mais força, muito mais força do que da última vez.
Tarde demais, compreendi que estava perdida.
Com o coração palpitando de medo, sabia que não podia simplesmente
deixar a caixa vazia em cima do armário. Olhei ao meu redor, em busca de
lugares onde pudesse me descartar da prova do crime, ao mesmo tempo em que
desejava nunca ter nascido. Debaixo da cama? Nem pensar, era ali que a maior
parte de nossas brincadeiras acontecia. Atrás do sofá na sala? Não, quando eu
escondera a boneca Sindy de Claire ali, depois de tosar todo o seu cabelo,
encontraram-na com uma rapidez assustadora. Por fim, optei pelo depósito de
carvão, pois não era mais usado. (Eu ainda era muito pequena para associar o
calor da estação à lareira apagada.)
Naturalmente, não tinha a menor intenção de confessar minha culpa.
Pelo contrário. Se pudesse culpar outra pessoa, teria culpado. Só que isso
também não costumava dar certo. Quando tentei incriminar Jennifer Nagle por
arrancar a cabeça da boneca de Margaret, deu tudo errado, mais errado
impossível.
Eu diria que o ovo tinha sido roubado por um homem, decidi. Um
homem com cara de mau usando uma capa preta que saía por aí roubando ovos
de Páscoa.
— O que está fazendo aí fora? — A voz de mamãe quase me matou de
susto, e o tiquetaque de meu coração se acelerou. — Vamos, Anna já está no
moisés, se não entrar já, vamos nos atrasar para apanhá-las na escola.
Rezei — embora sem muita fé — para que, assim que chegássemos à
escola, Margaret tivesse quebrado a perna, morrido ou qualquer outra desgraça
providencial.
Nada feito. Assim sendo, rezei durante a volta para que eu quebrasse
a perna ou morresse. Na verdade, vivia rezando para quebrar a perna. A pessoa
ganhava um monte de doces e todo mundo tinha que ser bonzinho com ela.
Mas cheguei em casa viva, fisicamente ilesa e quase gaga de pavor.
Por um breve momento, achei que estava salva: mamãe não conseguia
abrir a porta dos fundos. Torcia e sacudia a chave, inutilmente. Voltava à carga,
puxando a maçaneta em sua direção, mas a porta continuava fechada.
Comecei a sentir uma pontinha de medo, um medo aziago.
Os murmúrios que mamãe deixava escapar entre os dentes, com voz
séria, foram subindo de tom, até se parecerem mais com gritos do que com
murmúrios.
— Que foi, mamãe? — perguntei, ansiosa.
— Parece que essa bosta de fechadura quebrou — disse ela.
Aí, sim, fiquei morta de medo! Mamãe nunca dizia "bosta". Espinafrava
papai quando o fazia, ordenando-lhe que, em seu lugar, dissesse "joça". As
coisas deviam estar pretas.
E eu soube, com uma convicção profunda e inabalável, que tudo isso
era por minha culpa. Tinha a ver com o fato de eu ter comido o ovo de Páscoa de
Margaret. Eu cometera um pecado grave, talvez até mesmo mortal, embora não
tivesse muita certeza de qual fosse, e agora estava sendo castigada. Eu e minha
família.
Esperei que o céu escurecesse, como acontecia nas ilustrações da
Sexta-feira Santa que eu tinha visto, depois que o Menino Jesus morre.
— Não é horrível, Rachel? — perguntou Claire, maldosa. —
Nunca mais vamos ver o interior da nossa linda casa.
Foi ela falar e eu romper em lágrimas escandalosas, horrorizadas,
carregadas de sentimento de culpa.
— Pára com isso — mamãe sussurrou entre os dentes para Claire. —
Ela já é bastante difícil. — E para mim, impaciente: — Vamos chamar um
homem para consertar a fechadura. Fica aqui, tomando conta de Anna,
enquanto dou um pulo na casa da Sra. Evans e telefono para alguém.
Assim que deu as costas, Margaret e Claire me brindaram com
histórias de terror sobre meninas de sua classe na escola que encontraram a
fechadura da sua casa quebrada e nunca mais puderam entrar.
— Ela teve que ir morar no pântano — disse Claire. — E usar roupas
rasgadas.
— E o travesseiro dela era uma caixa de sucrilhos — acrescentou
Margaret.
— E o único brinquedo dela era um pedaço de papel que ela dobrava
em vários formatos, embora em casa tivesse um monte de bonecas e figurinhas
prá colar num quadro de feltro.
Eu chorava lágrimas de pavor, aterrada com o que destruíra. Era a
única responsável por privar minha família de um lar. Tudo por ser uma
calhordinha.
— A gente não pode comprar outra casa? — perguntei, em tom de
súplica.
— Ah, não. — As duas sacudiram a cabeça. — Uma casa custa muito
dinheiro.
— Mas eu tenho dinheiro no meu cofrinho — ofereci. Teria dado minha
vida, que dirá os cinqüenta pence novinhos guardados no cofre de lata em feitio
de caixa de correio, que ganhara de tia Julia.
— Mas o cofrinho tá trancado em casa — observou Claire, para logo
romper em gargalhadas cruéis com Margaret.
Mamãe voltou e disse que teríamos que nos sentar em frente à casa
para que o homem nos visse, quando chegasse. Os vizinhos nos ofereceram
santuário e chá, mas mamãe sentenciou que seria melhor ficarmos onde
estávamos. Assim sendo, a Sra. Evans mandou nos entregar um prato de
sanduíches de banana, que Claire e Margaret comeram com prazer, sentadas na
grama. Não consegui comer nada. Nunca mais comeria nada na vida.
Principalmente ovos de Páscoa.
As pessoas que passavam pela rua nas duas direções olhavam para
nós com interesse, de volta da escola ou do trabalho, para fazer suas refeições
no estilo do começo dos anos setenta. Passavam apressadas por nós ao encontro
de seu purê de batatas instantâneo, seguido por seu chantilly comprado pronto,
cantarolando uma canção de David Cassidy, lindas em suas camisetas de malha
sem mangas, esperando que a Guerra do Vietnã chegasse ao fim e a crise do
petróleo começasse.
Normalmente, a situação da minha família, sentada no jardim
comendo sanduíches de banana em setembro, teria me matado de vergonha. No
verão, vá lá, mas agora que as aulas tinham recomeçado, não pegava bem.
Sempre tive um faro muito desenvolvido para o que os outros pensavam de mim.
Mas, dessa vez, pouco me importava. Estava cagando e andando.
De olhos fundos, vítima de um desespero atroz, fitava os transeuntes.
— O homem vai mesmo conseguir abrir a porta prá gente entrar? —
não parava de perguntar a mamãe.
— Vaaaaai! Pelo amor de Deus, Rachel, vaaaaai!
— E a gente não vai ter que ir morar no pântano?
— De onde você tirou essa idéia de ir morar no pântano?
— Você acha mesmo que o homem vem?
— É claro que vem.
Mas o homem não veio. E a tarde virou noite, as sombras escureceram
e a temperatura caiu. Eu sabia o que tinha que fazer.
Tinha que me confessar.
Papai chegou em casa antes do homem. O que aconteceu foi que não
havia nada de errado com a fechadura, mamãe tinha apenas usado a chave
errada. A essa altura, é claro, já era tarde demais. Eu já vomitara as tripas, no
afã de corrigir o desequilíbrio que provocara no universo.
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