quarta-feira, 6 de julho de 2011

Férias!! - MARIAN KEYES Cap.36


— Santo Deus, já são quase nove horas! — exclamou Chris.
Seguiu-se uma debandada geral do refeitório para a sessão de segunda
de manhã: o grupo da Chucrute Azedo para a Biblioteca, encabeçado por Chris,
o de Barry Grant para o Santuário e o de Josephine para o Aposento do Abade.
Aos trancos e empurrões, o bando desembestou pelo corredor,
entrando e gritando em tom brincalhão sobre a conquista dos melhores
assentos. Chaquie e eu lutamos, disputando o mesmo. Com um empurrão forte,
ela me atirou no chão e saltitou vitoriosa em direção à poltrona. Choramos de
rir. Mike ficou com a outra poltrona boa. Misty sentou no colo dele, enroscandose
e dizendo "Eu quero. Dá prá mim", com um sorriso irônico de duplo sentido,
indicando que estava cheia de amor para dar. Mike ficou amarelo e saiu
capengando em direção à pior poltrona, cuja mola podia fazer uma bunda chorar
lágrimas de sangue, se a sessão fosse longa.
Josephine abriu a sessão dizendo:
— Rachel, deixamos você um pouco de lado na semana passada, não
é?
Meus intestinos viraram água.
Hora do questionário. Como eu podia ter chegado a achar que
escaparia? Isso me serviria de lição por ter brincado com Chaquie. Meu alto
astral desafiara o destino.
— Não é? — repetiu Josephine.
— Não me importo — murmurei.
—Sei que não — disse ela, jovial. — E essa é precisamente a razão pela
qual vamos fazer de você o centro das atenções.
Com o coração aos pulos, senti o ódio e a impotência se debaterem
dentro de mim. Tive vontade de derrubar as poltronas, enfiar um murro na cara
daquela figurona e arrepiar carreira pelos portões afora rumo a Nova York, para
matar Luke.
A consciência da loucura de minha estada no Claustro, sujeitando-me
a tamanha dor e humilhação, me atingiu com uma força esmagadora.
Calada e aflita, vi Josephine remexer algumas folhas de papel que
tinha nas mãos. Não faça isso, por favor, não faça isso.
— Gostaria que você escrevesse a história da sua vida — disse ela,
estendendo-me uma folha. — Aqui estão as perguntas que quero que você
aborde, ao fazê-lo.
Custei um pouco a compreender que fora poupada, que ela não ia ler
em voz alta o atestado da traição de Luke. Tudo que queria que eu fizesse era
uma sinopse boba da minha vida. Sem problemas!
— Não precisa ficar tão assustada — disse, com um sorriso malicioso.
Sorri debilmente.
Trêmula, dei uma rápida olhada na folha de papel que ela me dera.
Tudo que continha era uma lista de perguntas que deveriam servir de diretrizes
para a redação da história da minha vida. "Qual é sua lembrança mais antiga?"
"Quem era a pessoa de quem você mais gostava quando tinha três anos?" "Dez?"
"Quinze?" "Vinte?"
E eu que tinha achado que seria um exercício difícil de criatividade,
exigindo que desencavasse lembranças aleatórias de meu passado. Mas não,
seria simples como preencher um relatório de solicitação de reembolso à
companhia de seguros. Menos mal.
A sessão daquela manhã foi dedicada a Clarence, que, tendo
ultrapassado a marca das seis semanas, iria embora muito em breve.
— Você compreende que, se quiser ficar longe da bebida — disse-lhe
Josephine —, terá que mudar de vida quando voltar para o mundo lá fora.
— Mas eu já mudei — disse Clarence, ansioso. — Conheço aspectos de
mim mesmo que nem sonhava existirem, em todos os meus cinqüenta e um
anos de vida. Tive coragem de escutar minha família contando histórias de
quando eu estava embriagado. E tenho consciência de que fui egoísta e
irresponsável.
Era estranho ver alguém tão esquisito quanto Clarence falando com
tamanha autoridade e conhecimento de causa.
—Isso eu não discuto com você, Clarence — disse Josephine, com um
sorriso que, pela primeira vez, não tinha uma gota de ironia. — Você percorreu
um longo caminho. Mas me refiro às mudanças práticas que você vai ter que
empreender.
— Mas eu quase nunca pensava em beber, durante minha estada aqui
— insistiu Clarence. — Só quando acontecia alguma coisa ruim.
— Exatamente — concordou Josephine. — E as coisas ruins vão
acontecer lá fora também, porque essa é a natureza da vida. Só que, a essa
altura, você vai poder beber. O que vocês sugerem? — lançou a questão ao
grupo.
— Que tal psicoterapia? — indagou Vincent. — É claro que não
aprendemos o bastante sobre nós mesmos durante os dois meses que passamos
aqui, a ponto de não precisarmos aprender mais nada até o fim da vida.
— Tem razão, Vincent — aprovou Josephine. — Bem observado. Cada
um de vocês vai ter que mudar o comportamento de toda uma vida quando
voltar para o mundo lá fora. A psicoterapia, seja ela em grupo ou individual, é de
importância vital.
— Ficar longe dos bares — propôs Misty, veemente. — E se afastar das
pessoas com quem você bebia, porque já não vai ter mais nada em comum com
elas. Essa foi a minha desgraça.
— Vá por Misty — disse Josephine. — A menos que queira acabar aqui
de novo em seis meses.
— Freqüentar um monte de sessões dos AA — sugeriu Mike.
— Obrigada, Mike. — Josephine inclinou a cabeça. — Todos vocês
encontrarão um grande apoio nos AA e NA quando saírem.
— Você pode arranjar vários hobbies novos — sugeriu Chaquie —, para
encher o seu tempo.
Eu estava gostando dessa sessão. Era empolgante ajudar alguém a
planejar uma nova vida.
— Obrigada, Chaquie — agradeceu Josephine. — Pense um pouco no
que gostaria de fazer, Clarence.
— Bom... — disse ele, tímido. — Eu sempre...
— Diga.
— Sempre quis... aprender a dirigir. Vivia dizendo que aprenderia em
breve, mas nunca chegava a começar, porque, na hora H, sempre preferia a
bebida a qualquer outra coisa. — Clarence pareceu surpreso com o que acabara
de dizer.
— Essa — sibilou Josephine, seu rosto iluminado — é a coisa mais
perspicaz que você disse durante toda a sua estada aqui. Reconheceu uma
característica fundamental da vida do dependente: manter sua dependência é
tão importante, que ele não tem nenhum interesse por mais nada.
Bastou eu me sentir vaidosa por ter um monte de interesses — ir a
festas, bater perna na rua, comprar roupas, me divertir — para Josephine soltar:
— E gostaria que todos vocês se lembrassem de que comemorações,
festas, bares e boates não constituem interesses por si só. São simplesmente
atividades periféricas à manutenção do vício.
Disse isso olhando diretamente para mim, com seus olhos azuis e
inteligentes cheios de alegria e argúcia. Odiei Josephine como nunca tinha
odiado ninguém na vida. E, pode crer, eu já tinha odiado um bocado de gente.
— Algum problema, Rachel? — ela perguntou.
— Sei — disparei, possessa de raiva. — Quer dizer então que ir a uma
festa faz de alguém um dependente?
— Eu não disse isso.
— Disse, sim, você disse que...
— Rachel — ela subitamente se tornou muito firme —, para uma
pessoa normal, ir a uma festa é apenas isso, ir a uma festa. Mas, para um
dependente, é uma situação onde a droga de sua escolha, seja ela o álcool ou a
cocaína, estará disponível. É interessante que você tenha ouvido o que eu disse
desse jeito...
— E eu odeio essa palavra — soltei.
— Que palavra?
— Normal. Quer dizer então que se você é um dependente, é anormal?
— Sim, suas respostas às situações da vida quotidiana são anormais.
Um dependente usa sua droga, em vez de lidar com a vida, seja ela boa ou ruim.
— Mas eu não quero ser anormal — explodi.
Mas que...?, pensei, surpresa. Não tinha tido a menor intenção de dizer
aquilo.
— Ninguém quer ser anormal — disse Josephine, fitando-me com um
olhar afetuoso. — E por isso que a negação do dependente costuma ser tão forte.
Mas aqui no Claustro você vai aprender novas respostas, respostas normais.
Chocada e confusa, abri a boca para pôr os pingos nos is, mas ela já
tinha mudado de assunto.
Logicamente, eu sabia que ela era uma filha-da-puta burra e que não
havia absolutamente nada de errado em levar uma vida social saudável, mas me
sentia emocionalmente acuada. E desgastada. Tinha a impressão de estar
sempre me explicando ou desculpando por ser quem eu era e viver a vida ao
meu modo.
Em geral, dava uma banana para essas baboseiras do Claustro que
supostamente se aplicavam a mim, mas naquele dia não estava com forças para
bater no muque. Cuidado, adverti a mim mesma, com uma espécie de medo
premonitório. Não baixe a guarda, porque, se deixar, eles montam em você.
Senti-me estranha aquela noite, sentada no refeitório, para escrever a
história da minha vida. À vontade, como se aquele fosse o meu lugar. Como eu
tinha a temeridade de me sentir bem, jamais saberei. Imprensada entre o fora e
a armação de Luke, com o temido questionário ainda por vir, as coisas estavam
bem feias. Mas, como aquelas pessoas que conseguem levar uma vida feliz e
realizada morando ao sopé de um vulcão, eu às vezes conseguia me desligar de
minha insustentável situação. Tinha que me desligar. Enlouqueceria se não me
desligasse.
Misty não estava lá, o que me ajudou. Ela sempre me deixava nervosa
e irritada.
Chupando a ponta da caneta, eu olhava para Chris, principalmente
suas coxas. Meu Deus, ele era delicioso. Desejei que ele olhasse para mim,
enquanto eu estava com a caneta na boca. Achava essa pose um tanto
provocante. Mas ele não olhou. De repente, a ponta de minha língua ficou
insensível, do gosto da tinta. Ugh! Ansiosa, me perguntei se meus dentes tinham
ficado azuis.
Desde a véspera, eu vinha observando Chris atentamente, para ver se
Helen me suplantara em seus afetos. Ele não chegava a ser antipático,
brindando-me com as brincadeiras de sempre e a dádiva ocasional do contato
físico. Mas, seria imaginação minha ou tinha havido uma diminuição
infinitesimal no seu interesse por mim, tão pequena que chegava a ser invisível a
olho nu? Talvez eu estivesse apenas sendo paranóica ao extremo, pensei,
procurando me acalmar.
Tentei me concentrar na história da minha vida, mas de novo meu
olhar foi irresistivelmente atraído para Chris, que jogava Trivial Pursuit com
alguns outros internos. Ou, pelo menos, tentava. As discussões não paravam de
interromper o jogo, porque Vincent suspeitava que Stalin tivesse decorado todas
as respostas. Jurava tê-lo visto lendo e estudando os cartões.
Davy, o jogador, implorava a eles para que jogassem a dinheiro. A
palitos de fósforo, que fosse.
A discussão me fez lembrar da minha família. Só que os internos não
eram tão ferozes, é claro.
Tinha começado a nevar. Deixamos as cortinas abertas para podermos
ver os flocos macios esvoaçando por trás da janela.
Barry, o Bebê, dançava pelo aposento, fazendo tai chi chuan, com
movimentos graciosos, relaxantes de se assistir. Ele estava lindo, como um
querubim de cabelos escuros. E quase parecia alegre e animado, no universo
particular de seu transe. Especulei que idade teria.
Eamonn entrou, com seu passo de pato, e quase tropeçou em Barry.
— Que é que está acontecendo? — indagou. — Isso é perigoso, você não
devia fazer.
— Deixa o garoto fazer o chow tnein* dele — protestou Mike.
(*Prato chinês à base de macarrão frito, carne e legumes desfiados.)
Nesse momento, Chaquie chegou, reclamando em voz alta de alguma
coisa que lera nos jornais sobre uma distribuição de preservativos às mães
solteiras, com o objetivo de evitar que aumentassem suas famílias.
— É uma vergonha — ela fumegava. — Por que o dinheiro do
contribuinte deve ser empregado em preservativos para elas? Não deveriam
precisar de absolutamente nada. Sabem qual é o melhor anticoncepcional?
Barry franziu a testa, pensativo.
— Seu rosto? — arriscou.
Chaquie não deu bola para ele.
— A palavra "não"! É simples assim, bastam três letrinhas, n, a, o, til:
não. Se tivessem um mínimo de moralidade, não precisariam...
— AH, CALA A BOCA! — berraram todos em uníssono.
As coisas se aquietaram um pouco, até John Joe pedir a Barry que lhe
demonstrasse os rudimentos do tai chi chuan. Barry, sendo o amor de criança
que era, fez sua vontade.
— Está vendo? Você desliza a perna pelo chão, aqui. Não, desliza.
Em vez de deslizar a perna graciosamente, John Joe se limitou a
levantar o pé calçado com uma botina pesada e plantá-lo desajeitadamente em
outro ponto do chão.
— Desliza, está vendo? Assim.
— Me mostra de novo — pediu John Joe, chegando mais perto de
Barry.
Todos nós que estávamos no grupo de John Joe nos retesamos,
pensando a mesma coisa. "Ele se sente atraído por Barry. Ó Deus, ele se sente
atraído por Barry!"
— E levanta o braço com delicadeza. — Barry ergueu o braço com a
graça de uma bailarina. John Joe esticou o seu como se estivesse dando um
murro em alguém.
— Agora dá uma arqueadinha nos quadris.
Outra babel de vozes irrompeu, dessa vez porque Stalin sabia a capital
da Papua Nova Guiné.
— Como é que você pode saber? — perguntou Vincent. — Como é que
um idiota como você pode saber uma coisa dessas?
— Porque não sou um idiota burro, como alguns que posso citar —
insistiu Stalin.
— Nada a ver. — Vincent sorriu, sombrio. — Nada. A. Ver. É porque
você andou estudando feito um louco as respostas, eis por quê. Capital da
Papua Nova Guiné é o cacete, você mal sabe qual é a capital da Irlanda, embora
viva nela. Se não fosse um alcoólatra, nunca teria saído da Rua Clanbrassil, você
está longe de ser o que se possa chamar de viajado...
— Shhh, pessoal, por favor, estou tentando escrever a história da
minha vida — disse eu, bem-humorada.
— Por que não vai para a Sala de Leitura? — sugeriu Chris. — Lá você
vai ter mais sossego.
Fiquei dividida entre a oportunidade de admirá-lo e a de me mostrar
grata por sua sugestão.
— Vai — incentivou-me ele, com um sorriso. — O trabalho lá vai render
à beça.
Não precisou dizer mais nada.
Mas, assim que tentei escrever a história da minha vida, quer dizer,
escrever mesmo, em oposição a ficar sentada diante do papel, subitamente
compreendi por que razão, na primeira noite em que estivera na Sala de Leitura,
estavam todos dando tapas nas mesas, amassando bolas de papel, atirando-as
na parede, desesperados, e gritando "Não consigo fazer isso!".
Ao me ver confrontada com as perguntas, descobri que, no fundo, não
queria responder a elas.

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