Naturalmente, não pude ir trabalhar no dia seguinte. Livre de qualquer
sentimento de culpa — afinal, para variar, estava realmente doente —, tomei
outro punhado de pílulas e me preparei para curtir meu dia de folga.
Que foi bom.
Com uma agradável sensação de leveza provocada pelo efeito dos
analgésicos e da umidade do ar, assisti ao programa do Geraldo, depois ao de
Jerry Springer, depois ao de Oprah e depois ao de Sally Jessy Raphael. Comi
uma caixa inteira de sorvete e um saco tamanho-família de salgadinhos de
milho. Por fim, tirei uma soneca.
Quando Brigit chegou em casa do trabalho, eu estava deitada no sofá,
usando calças largas de ginástica e um sutiã, comendo sucrilhos de canela
direto da caixa. Porque, como todo mundo sabe, cereais comidos direto da
embalagem — assim como biscoitos de chocolate partidos em pedaços e
qualquer alimento ingerido de pé — não contêm calorias.
— Você faltou ao trabalho de novo? — foram suas primeiras palavras.
— Eu estava doente — me defendi.
— Ah, Rachel...
— Estava doente mesmo, dessa vez. — Fiquei irritada. Quem precisa de
mãe, quando tem Brigit?
— Você vai perder seu emprego, se continuar fazendo isso.
Só Deus sabe por que ela estava tão irritada comigo. Quantas vezes, no
passado, já não tinha me pedido para telefonar para o seu emprego e dizer que
estava doente?
Mas, enfim, estava fazendo calor demais para brigar.
Cala a boca — disse eu, constrangida —, e me conta como é que foi
ontem à noite com Nosso Homem em Havana.
— Madre de Dios! — exclamou ela. Era a única coisa que se lembrava
das aulas de espanhol que andara tendo, numa tentativa de conquistar o
coração do infiel Carlos. — Alta dramaturgia, minha filha! Desliga essa televisão
e liga o ventilador, que eu te conto.
— O ventilador está ligado.
— Caramba, e a gente ainda está em junho. — Suspirou. — Enfim,
espera só até ouvir.
Com o rosto sombrio de raiva, ela contou que se despencara para o Bar
Z, apenas para descobrir que Carlos já tinha ido embora. Assim, foi até seu
apartamento, mas encontrou Miguel montando guarda à porta, sem querer
deixá-la entrar. Mesmo assim, ela chegou a avançar até o vestíbulo, onde viu
uma guria hispânica de uns noventa centímetros de altura, com olhos castanhos
e vivos e um ar do tipo não-se-mete-comigo-ou-meus-irmãos-vão-sacar-asnavalhas.
— Assim que pus os olhos nela, eu soube, sabe como, Rachel?, eu
soube que ela era alguma coisa de Carlos.
— Intuição feminina — murmurei. Mas talvez devesse ter dito "Neurose
feminina". — E ela era alguma coisa de Carlos?
— A nova namorada dele, segundo ela. Me fez entrar, ficou gritando em
espanhol com Carlos e aí me disse "Vai procurar tu turma".
— “Vai procurar tu turma"? — Fiquei chocada. — Como em West Side
Story?
Musical de 1957 da dupla Rodgers e Hammerstein, sobre o amor
proibido entre uma descendente de porto-riquenhos e um descendente de
italianos.
— Exatamente — disse Brigit, seu rosto tomado por uma fúria
estereotípica. — E eu não quero procurar a minha turma, os homens irlandeses
são de lascar. E espera só até ouvir a pior parte: ela me chamou de gringa. Com
essas exatas palavras: "Tu eres uma gringa." E Carlos deixou, ficou lá sentado
como se de repente não soubesse mais se defender sozinho! CALHORDA —
berrou, atirando minha lata de desodorante do outro lado do quarto, onde foi
quicar numa parede. — Aquele merdinha imundo, xexelento. Vê se pode, gringa,
que desaforo.
— Mas peraí — disse eu, ansiosa. — Gringa não é um desaforo.
— Ah, não mesmo — disse Brigit, agitada. — Como então, ser chamada
de piranha não é um desaforo. Muitíssimo obrigada, Rach...
— Gringa não quer dizer piranha — levantei a voz. Era preciso falar
alto para se comunicar com Brigit quando estava com esse tipo de estado de
espírito. — Quer dizer apenas uma pessoa da raça branca.
— Então, como se diz piranha em Cuba?
— Sei lá, foi você quem teve aulas de espanhol.
— Sabe — Brigit parecia um pouco encabulada —, bem que eu achei
que ela ficou com um ar meio confuso quando eu disse que não era nenhuma
gringa e que a única gringa ali era ela.
— Quer dizer então que é o fim da linha para Carlos? — perguntei. Até
o próximo fim da linha, pelo menos. — É definitivo?
— Definitivo — ela confirmou. — Temos que encher a cara hoje à noite.
— Tem razão. Ou talvez eu pudesse ligar para Wayne e...
— NÃO — berrou ela. — Já tô cheia de você ficar...
— O quê? — encarei-a, amedrontada.
— Nada — ela murmurou. — Nada. Só quero ficar bêbada, sentimental
e chorar. Ninguém consegue ficar infeliz com cocaína. Pelo menos não quando é
a própria pessoa que cheira — acrescentou, misteriosa. — Vou trocar de roupa.
— Prostituta — gritou Brigit do quarto.
— Você também não é nenhuma santa — devolvi.
— Não. — Percebi o tom de riso em sua voz. — Olhei no dicionário, é
assim que se diz piranha em espanhol.
— Ah, tá.
— Quero ter certeza de que vou estar ofendendo ela direito na carta.
— Que carta? — perguntei, desconfiada.
— A carta que vou escrever para aquela Sacana Cubana.
Ah, não.
— Piranha atrevida — prosseguiu Brigit. — Quem ela pensa que é para
ser grossa comigo? Essa não é boa, Sacana Cubana? E nós somos as Princesas
Irlandesas. Vamos ver se consigo arranjar mais rimas.
—Não seria melhor para você mesma se escrevesse uma carta para
Carlos? — arrisquei, cautelosa.
Ouvi-a murmurando:
— ...fulana, cigana, banana, cabana, paisana, pestana, roldana... Não.
— Por que não?
— Porque aí ele saberia que gosto dele.
— Sabe — acrescentou —, se essa mulher quiser que o namoro dela
com Carlos dure, vai ter que ser boa em duas coisas.
— Quais?
— Chupar e perdoar.
O telefone tocou. Ambas mergulhamos nele de ponta-cabeça, eu da
sala, Brigit do quarto. Brigit chegou primeiro. Sempre tivera reflexos
maravilhosos, desde pequena. Passamos muitas horas felizes batendo com a
ponta de uma régua abaixo da rótula uma da outra e gritando "Mexeu!".
— É para mim — veio a voz dela de longe.
Uns sete segundos depois, correu de volta para a sala, quase sem
fôlego.
— Adivinha quem era!
— Carlos.
— Como é que você sabe? Enfim, ele quer se desculpar comigo. Então,
er... vai vir aqui daqui a pouco.
Não disse nada. Quem era eu para julgar?
— Bom, vamos lá, vamos arrumar este lugar, ele vai estar aqui em
meia hora.
Sem muito ânimo, amassei sacos vazios de salgadinhos de milho e
latas de cerveja, e arrastei meu edredom de volta para o quarto.
Carlos não apareceu meia hora depois. Nem uma hora depois. Nem
uma hora e meia depois. Nem duas horas depois. Nem três horas depois.
Brigit foi desmoronando noite adentro, ruindo em câmera lenta.
— Não acredito que ele esteja fazendo isso comigo de novo —
murmurou. — Depois da última vez, prometeu que não me torturaria assim.
Uma hora e meia depois, ela não agüentou mais e me fez ligar para ele.
Ninguém atendeu. Isso a animou, pois achou que indicava que ele já estava a
caminho. Mas, vinte minutos depois, como ele ainda não tivesse chegado, foi
forçada a desistir da idéia.
— Ele está com ela, a sacaninha cubana — gemeu. — Eu sinto isso,
sou uma bruxa, meus pressentimentos nunca falham.
Senti uma pontinha cruel de alegria. Torcia para que ele fosse tão sujo
com ela, que ela seria obrigada a desistir dele. Mas me envergonhava por isso.
Quando o atraso atingiu a marca das três horas, ela se levantou e
disse:
— Muito bem, vou até lá.
— Não, Brigit — implorei. — Por favor... sua dignidade... seu amorpróprio...
um porco... uma vara de porcos... não valem uma mijada sua... de que
adianta... senta aí.
Nesse exato momento, a campainha do interfone tocou. Foi como se o
apartamento inteiro suspirasse de alívio.
— Aos quarenta e três minutos do segundo tempo — murmurou Brigit.
Preferi não lembrar a ela que os quarenta e três minutos do segundo
tempo já tinham passado há algum tempo, e que já estávamos indo para os
pênaltis.
Um brilho estranho surgiu nos olhos de Brigit.
— Assiste só — disse ela, trincando as mandíbulas e caminhando com
passo despreocupado para o interfone. Apanhou o fone e respirou fundo. Em
seguida, com a voz mais alta que já ouvi na vida, gritou: — VAI À MERDA!
Deu as costas e começou a se sacudir de tanto rir.
— Isso vai servir de lição para aquele cafajestinho.
— Posso tirar uma casquinha? — pedi, ávida.
— Fica à vontade. — Ela ria de chorar.
— Ham-ham. — Pigarreei. — O.k., lá vai. É ISSO AÍ, VAI À MERDA!
Ato contínuo, caímos nos braços uma da outra, chorando de rir. A
campainha do interfone tornou a tocar, longa e estridente, levando-nos á ficar
quietas por um momento.
— Ignora — disse eu, recobrando o fôlego.
— Não posso — ela abafava o riso. Então, caímos na gargalhada outra
vez.
Ela teve que esperar até conseguir falar, antes de apanhar o fone e
dizer "Entra, seu porco gordo e cabeludo", e apertar o botão que abria a porta.
Ele estava com um ar ressabiado e magoado. E não era para menos.
Porque era Daryl, não Carlos. Daryl! Como então, os sonhos se
realizam.
Era difícil de acreditar que acabara de transpor a soleira da nossa
porta. Para ser absolutamente honesta, eu já o dava por morto. Concluí que
devia ter perdido o número do meu telefone, mas que se lembrava do endereço
por causa da noite da festa. Eu estava tão feliz, que quase tive uma convulsão.
Agora que as coisas chegavam a bom termo, era engraçado constatar
como meus medos pareciam infundados.
— Oi, Rebecca — disse ele, distante.
— Rachel — corrigi-o, constrangida.
— Não, Daryl — disse ele. — Meu nome é Daryl.
Já não parecia ser tão boa-pinta quanto eu me lembrava dele na noite
de sábado, mas não me importei. Usava roupas fantásticas, conhecia Jay
McInerney e eu estava vidrada nele.
— Pois é, Rebecca — disse ele, sem prestar muita atenção em mim. —
Estou proc...
— Desculpe — me obriguei a dizer —, mas meu nome é Rachel.
Logo me senti culpada, pois ele podia achar que eu o estava criticando.
— Mas não importa — acrescentei.
Quase disse "Pode me chamar de Rebecca, se quiser".
— Por que vocês duas me mandaram à merda? — perguntou, dando
uma longa fungada que explicou a natureza de seu olhar perdido, instável.
Como Brigit ficara muda de decepção e incredulidade, tive que
responder:
— Pensamos que você fosse outra pessoa...
A campainha tocou outra vez, e Brigit logo ficou animadíssima. Correu
para a porta, pegou o fone e soltou aos berros um passa-fora incoerente, do qual
apenas uma a cada dez palavras era compreensível:
PUTOCALHORDAATRASADOSACANAMAISOQUEFAZERESCROTOBAB
ACAPROFUNDASDOINFERNO.
Desfechou dizendo "Entra, seu babaca", e apertou o botão. Só então
pareceu se dar conta de Daryl.
— MAMA mia — disse, com ar sombrio, dando um risinho estranho. —
MAMA mia. MAMA MAMA mia. Ha, ha.
Assustada, concluí que nunca devia ter contado a ela sobre o episódio
com Daryl. Agora que ficara doida, esse conhecimento podia ser bastante
incendiário.
Enfiou o polegar na boca e chegou o rosto bem perto do de Daryl, perto
até demais, antes de tornar a dizer, num tom muito sugestivo: "Mama." Com
outra risada estranha e maligna, dirigiu-se para a porta. Tanto mais fácil seria
descer o braço em Carlos quando chegasse.
Quando Luke entrou tranqüilamente, carregando duas caixas enormes
de sorvete, Brigit fez cara de quem acabou de morrer.
— Oi, Brigit — disse ele, com a maior naturalidade. — O calor está te
deixando nervosa?
Ela o fitou com olhos fundos, exaustos de guerra.
— Luke — murmurou. — Foi você quem tocou...?
— Pois é — disse ele. — O que aconteceu? O cubano se escafedeu de
novo?
Ela assentiu, calada.
— Não prefere dar o caso por encerrado e sair com um irlandês legal?
— perguntou ele.
Ela continuou a fitá-lo, seus olhos vazios como dois túneis
abandonados.
— Será que um sorvetinho não faria você se sentir melhor? —
prosseguiu, em tom afetuoso.
Eis um homem que conhece as mulheres, me peguei pensando,
embora também tivesse levado um choque com sua chegada inesperada. Ainda
mais com Daryl no recinto.
Ela fez que sim com a cabeça, como uma debilóide. Quando Luke
estendeu uma das caixas de sorvete em sua direção, ela hesitou, mas logo
arrancou-a dele, como uma criança com medo de que lhe tomem o brinquedo.
— Todo... para... mim? — a muito custo perguntou. Eu já a vira
catatônica de decepção antes, mas nunca tão mal assim.
Luke fez que sim com a cabeça:
— Todo para Brigit — disse ela, como uma débil mental, o braço
estreitando a caixa.
Todos a observavam, ansiosos.
— Que bom — balbuciou. — Todo para a coitadinha da Brigit.
Em silêncio, nós a observamos tentando caminhar.
— Colher — murmurou, cambaleando em direção à cozinha. — Come.
Se sente melhor.
Então, deteve-se de um tranco:
— Não, não precisa. Come de qualquer jeito. Sem colher.
Não desgrudamos os olhos dela até conseguir chegar a seu quarto.
Quando bateu a porta, Luke voltou-se para mim.
— Rachel — disse, num tom de voz diferente do que tinha empregado
para acalmar Brigit.
Era um tom de voz significativo, que fez com que meu estômago se
sentisse como se já tivesse ganho um pouco do sorvete que ele trouxera. Mas a
consciência da presença de Daryl e seu nariz fungão não me permitiu apreciar
essa sensação.
— Ah, oi, Luke — disse eu, constrangida. — Não estávamos esperando
você.
Assim que as palavras saíram de minha boca, me arrependi por tê-las
dito, pois não soavam nada acolhedoras. Emendei depressa: "Mas estou muito
feliz por ver você." Mas aí me arrependi da emenda, porque soava
condescendente e hipócrita.
Minha pele comichava. Ai, por que Luke tinha que aparecer logo agora
que Daryl estava lá? E por que Daryl tinha que estar lá logo agora que Luke
aparecera?
Uma desgraça nunca vem sozinha. O diabo é quando resolve trazer a
família inteira. Era disso que eu tinha medo.
E também de que Daryl pensasse mal de mim por conhecer alguém
que usava uma camiseta do Senhor dos Anéis.
Mas, e isso me surpreendeu, também estava nervosa porque Luke
obviamente achava que Daryl era uma dessas bichas loucas que vivem
rebolando em discotecas.
Descobri que gostava de Luke, e não fiquei nem um pouco feliz com a
descoberta.
Luke se voltou para Daryl, e sua expressão mudou:
— Darren — cumprimentou-o com um aceno de cabeça, malhumorado.
— Daryl — corrigiu o outro.
— Eu sei — disse Luke.
— Alguém gostaria de beber alguma coisa? — perguntei com a voz
esganiçada, antes que estourasse uma guerra.
Luke me seguiu até a cozinha.
— Rachel — chamou baixinho, num tom suave e melodioso, seu corpo
grande e sensual quase encostando no meu —, você não se lembra, lembra?
— Do quê? — Senti uma nota tênue de seu cheiro, e tive vontade de
dar uma dentada nele.
— Você me pediu para vir aqui hoje à noite.
— Pedi? Quando?
— Hoje de manhã, quando eu estava de saída.
Meu coração se apertou de medo, pois eu não tinha a mais pálida
lembrança do pedido. E não era a primeira vez que esse tipo de coisa acontecia.
— Ah, meu Deus — soltei uma risadinha nervosa —, eu não devia estar
acordada. — Mas estava acordada o bastante para pedir a ele que ligasse para
meu emprego, dizendo que eu estava doente.
— Finge que é meu irmão — lembrava-me de ter dito a ele.
— Nesse caso — desfechou Luke, com uma expressão glacial,
colocando a outra caixa de sorvete em cima da pia —, vou deixar você.
Deprimida pela consciência do quanto lidara mal com a situação e de
como a culpa era toda minha, vi-o ir embora.
Queria detê-lo, mas todas as partes de meu corpo, com exceção do
cérebro, estavam paralisadas, como se eu tivesse acabado de acordar de uma
anestesia geral.
Volta, minha cabeça gritava, mas a voz não colaborava.
Vai atrás dele, agarra ele, ordenava minha cabeça, mas os braços e
pernas estavam sofrendo um apagão.
Quando a porta bateu atrás dele, ouvi Daryl fungar e dizer: "Putz, esse
cara é superagressivo."
Cansada, voltei minha atenção para ele, decidida a salvar tudo que
podia da situação.
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