Dizem que o caminho do verdadeiro amor jamais corre desimpedido.
Bem, o caminho do meu amor por Luke não corria, capengava, como se usasse
botas novas que esfolavam seus calcanhares. Cheios de bolhas e cortes,
vermelhos e em carne viva, cada palmo avançado uma tortura, pulando num pé
só, num ziguezague de barata tonta.
Na semana que se seguiu à festa, pensei muito nele. Sentia uma
vergonha horrível, toda vez que lembrava como me comportara mal. Na hora
achei que estava sendo uma femme fatale, mas depois me senti mais como uma
prostituta. Não conseguia parar de pensar nisso, da mesma maneira como a
gente não consegue parar de cutucar com a língua um dente dolorido.
Embora eu torcesse para nunca mais tornar a pôr os olhos em Luke,
ele me intrigava. Sua rejeição despertara um interesse em mim que até então eu
não sentia.
Ponto para ele, uma parte de mim pensou. Um homem de princípios.
Ao que outra parte de mim gritou: Não, espera aí, ele me rejeitou.
Era a noite de terça depois de nossa festa, e Brigit e eu estávamos com
a cachorra.
Eu tinha cheirado a balde na noite anterior, e amargava um bode
particularmente severo, porque o Valium, que poderia amenizar seus efeitos,
tinha acabado. E eu não teria dinheiro para refazer seu estoque até receber meu
salário. Passara o dia inteiro me sentindo tão deprimida que não tivera forças
para ir trabalhar. Tudo que consegui foi ficar deitada no sofá, apática, com
aquele mal-estar indefinido, sentindo meu coração bater devagar, lamentando
não ter a energia necessária para cortar os pulsos.
Carlos fizera outro de seus números de mágica para Brigit e
desaparecera, depois de descobrir, na festa, sabe-se lá como, que Brigit e Joey
tinham se conhecido biblicamente. (Pode ter tido alguma coisa a ver com o fato
de que Gaz a abordou respeitosamente, quase às lágrimas, e disse, perto o
bastante para Carlos ouvir: "Putz, você é uma mulher e tanto, Joey disse que
nunca levou uma chupada tão boa quanto a sua.")
Brigit estava arrasada, e eu não ficava muito atrás. Daryl, o bambambã
das edições e melhor amigo de Jay McInerney, não tinha me ligado.
— Se pelo menos eu soubesse onde ele está — sussurrava Brigit,
torturada. — Se pelo menos soubesse que ele não está com ninguém, poderia
dormir um pouco. Há três noites que não durmo, sabia?
Tentei acalmá-la com murmúrios cuja entrelinha era "Você é boa
demais para aquele cafajestinho desprezível".
— Você ligaria para ele? — suplicou Brigit. — Por favor, liga para ele e,
se ele atender, desliga depressa.
— Mas como é que eu vou saber? Não vejo a menor diferença entre a
voz de Carlos e a dos amigos.
— Tá, tá — disse ela, andando de um lado para o outro e respirando
fundo. — Pede para falar com ele e, se for o próprio, desliga.
— Mas ele vai reconhecer minha voz.
— Disfarça, faz sotaque russo, inala gás de balão, sei lá. E, se não for
ele, mas disserem que ele está, desliga do mesmo jeito.
(NOTA: Nos EUA, não é incomum que os convidados de uma festa
inalem hélio, por brincadeira. Diz-se que a voz da pessoa fica totalmente
diferente.)
Telefonei, mas caiu na secretária-eletrônica, com seu samba horrível.
— Ai, Jesus. — Ela enfiou os dedos na boca, estragando suas unhas
novas e caras de náilon. — Ele só está fazendo isso para me castigar, sabia?
Eu suspeitava que Carlos não estava aborrecido com Brigit por ela ter
dormido com Joey, e sim que apenas andava procurando uma desculpa para dar
outro fora nela. Mesmo assim, murmurei "canalha" para ela saber que contava
com meu apoio.
— E até parece que ele nunca transava com outras mulheres —
torturou-se.
— E aquele porco do Daryl também não me ligou — disse eu, não
querendo ficar atrás. — Por favor, Deus, se fizer com que ele telefone, dou todo o
meu dinheiro para os pobres.
Eu sempre dizia isso porque estava segura; eu era os pobres, de modo
que só precisava guardar minha graninha para manter o trato com Deus.
E varamos a noite, na maior paranóia, fazendo as coisas de praxe: tirar
o telefone do gancho para termos certeza de que estava funcionando, ligar para
Ed pedindo que nos ligasse de volta só para termos certeza de que estávamos
recebendo chamadas, dizer "Vou dividir este baralho ao meio, se a primeira carta
que vir for um rei, ele vai ligar". (Foi um sete.) Em seguida, "Melhor de três, se a
próxima que eu puxar for um rei, ele vai ligar". (Foi outro sete.) Por fim, "O.k.,
melhor de cinco, se..."
— CALA A BOCA! — berrou Brigit.
— Desculpe.
Por fim, Brigit pôs o dedo sobre os lábios e disse;
— Shhh, escuta.
— O quê? — engasguei, excitada.
— Tá ouvindo?
— Ouvindo o quê?
— O som do telefone não tocando.
Então, para minha surpresa, ela riu, como se uma nuvem saísse de
cima dela.
— Vamos lá. — Abriu um sorriso. — Não agüento mais essa porra de
vigília, vamos fazer alguma coisa que preste.
A terrível depressão em que eu sufocara durante o dia inteiro sacudiu
a poeira um pouco.
— Vamos nos produzir — disse eu, ansiosa. — Vamos sair. —
Detestava ficar em casa à noite, por causa de tudo que poderia estar perdendo.
Esse era o grande barato da cocaína. Sempre acontecia alguma coisa
maravilhosa quando a gente cheirava. Ou conhecia um homem, ou ia à festa de
alguém, ou alguma outra coisa. A coca impulsionava minha vida. E, quanto mais
eu cheirava, mais excitantes os resultados.
— Você está dura — lembrou-me Brigit.
Ela tinha razão, admiti, decepcionada. Não podia me dar ao luxo de
comprar drogas aquela noite. Por um momento pensei em perguntar a Brigit se
me emprestaria mais dinheiro, mas mudei de idéia.
— O que eu tenho dá para uma bebida e uma gorjeta — achei melhor
dizer.
— Quando é que você vai devolver o dinheiro que me deve?
— Logo — respondi, constrangida. Brigit andava sofrendo de um
estranho pão-durismo nos últimos tempos.
— É o que você vive dizendo — resmungou ela.
— Ora, por favor, pára de ser desmancha-prazeres e baixo-astral e
vamos sair. Passamos a semana inteira brincando de "Vamos fazer de conta que
conheci o homem certo", não agüento mais.
Em geral, quando Brigit e eu estávamos sem dinheiro e sentíamos falta
de diversão, ela detalhava uma fantasia em que eu conhecia o homem dos meus
sonhos, e depois eu fazia o mesmo por ela. Era uma brincadeira de que
raramente nos cansávamos.
— O que estou vestindo? — eu perguntava.
— Aquele vestido traspassado da Donna Karan que nós vimos.
— Que cor, preto?
— Verde-escuro.
— Melhor ainda. Obrigada, Brigit. Posso ser bem magrinha?
— Claro. Cinqüenta quilos está bem para você?
— Um pouco mais leve.
— Quarenta e oito?
— Obrigada — eu dizia. — E como? Lipoaspiração?
— Não — dizia ela. — Você teve disenteria amebiana e a gordura
simplesmente caiu, sem que você precisasse fazer nada.
— Mas como foi que eu peguei disenteria amebiana? Não é uma doença
exótica? Essa é daquelas que a gente não arranja sem receita.
— Tá, você conheceu um homem que passou as férias na Índia... Mas
que importa como você pegou? Isso é uma fantasia.
—Tá, desculpe. Estou frágil, com os olhos grandes e um ar misterioso?
— Como uma gazela bem-vestida.
Para contrabalançar nossa baixa auto-estima, pusemos nossos
melhores vestidos: Brigit, o soltinho de Joseph do brechó na Quinta Avenida,
para onde as pessoas ricas de bom coração doavam suas roupas velhas; e eu, o
pretinho curto de Alaia, oriundo do mesmo berço humilde, mais minha falsa
bolsa Prada, que comprara na Rua Canal por dez dólares.
Eu podia não estar parecendo uma top model com cachê de um milhão
de dólares, mas merecia pelo menos uns vinte e sete ou vinte e oito.
Como sempre, fiquei numa dúvida atroz quanto a usar meus sapatos
altos de couro de cobra preto, com tornozeleiras, porque me deixavam alta
demais.
— Ah, usa, sim — disse Brigit. — De que adianta comprar os sapatos,
se nunca usa?
E lá fomos nós, eu meio cambaleante em cima dos saltos novos, para o
Llama Lounge.
O Llama Lounge era um bar que reconstituía a atmosfera dos anos
sessenta: lâmpadas halógenas muito doidas, cadeiras de metal para lá de
esquisitas e trapizongas futuristas e espaciais em geral. Muito, muito chique.
Brigit sentou-se com todo o cuidado num sofá inflável de plástico
transparente.
— Não tenho certeza se esse troço agüenta com meu peso — disse,
ansiosa.
— Não! — Fiz menção de sentar ao seu lado, mas ela não deixou. — Se
sentarmos as duas, ele vai estourar — explicou.
— Mas que droga — disse ela, quando finalmente se acomodou.
— Que foi?
— Esse troço é transparente, e você sabe como tudo se espalha quando
a gente senta. Todo mundo atrás de mim vai pensar que tenho cento e vinte
centímetros de quadris. Dá uma volta e olha, tá? — pediu, em voz baixa, aflita.
— Mas não faz cara de quem está checando, vai como quem não quer nada.
Sentindo-me uma idiota, dei a volta ao sofá.
— Está tudo bem — disse eu, quando voltei, ocupando uma poltrona
reclinável de prata que deixou minha bunda quase no chão e meus joelhos
vários centímetros acima, evocando a desagradável sensação de um exame
ginecológico.
— Desculpe incomodar — interrompeu uma voz amável e fanhosa —,
mas será que posso lhe perguntar se...?
De minha desabada posição, ergui os olhos para o jovem bacaninha.
Dezessete anos, no máximo. Jovem demais.
— É alguma coisa, sabe... mística, o que você acabou de fazer?
— Que foi que eu acabei de fazer?
— Você deu a volta ao sofá. — Ele era ridiculamente bonito. Fiquei
muito feliz por não ser uma garota, a competição já era bastante acirrada.
— Ah, o círculo...? — Senti um ataque de espírito de porco baixar em
mim. — Foi, realmente. Um antigo ritual irlandês...
— Chinês! — Brigit disse ao mesmo tempo.
— Tem sido observado tanto na cultura chinesa quanto na hibérnica —
disse eu, com a maior cara-de-pau. — Traz...
— Boa sorte? — Garoto(a) interrompeu, ansioso(a).
— Exatamente.
— Obrigado.
— Não há de quê.
— Ele podia pelo menos ter pago uma bebida para a gente — disse
Brigit, ressentida.
Ficamos a observá-lo quando voltou para seu grupo de amigos da
mesma idade e explicou algo para eles, entusiasmado, descrevendo vários
círculos com o dedo sobre a mesa. Uma expressão preocupada surgiu no seu
rosto, e ele se levantou, voltando a se encaminhar na nossa direção.
— No sentido horário — gritei para ele.
Eufórico, tornou a sentar e deu prosseguimento à sua explicação.
Após alguns minutos, vimos os cinco do grupo levantarem, numa fila
indiana reverente, e contornarem suas cadeiras. Ao voltarem ao ponto de
partida, apertaram-se as mãos e abraçaram-se, emocionados.
Passados alguns minutos, uma garota de outra mesa se dirigiu até eles
e lhes perguntou alguma coisa. Garoto(a) falou com elas e apontou para mim e
Brigit, descrevendo mais alguns círculos no ar. Pouco depois, a garota voltou
para seus amigos, que se levantaram em peso e contornaram seus assentos.
Mais abraços e beijos. Então, alguém foi até a mesa deles... E assim
sucessivamente. Foi como assistir a uma lentíssima ola mexicana.
Estava quente. Sentadas em nossos desconfortáveis assentos,
bebericávamos nossos drinques sofisticados. Os drinques do Llama Lounge eram
acompanhados por lindas coberturas e enfeites comestíveis. E não se podia
sequer dar uma olhada num raio de dois metros de um garçom sem ter um
pratinho de pistaches transadíssimo empurrado na sua direção.
Comecei a me sentir normal, e não apenas por causa da meia garrafa
de tequila que enxugara desde o almoço.
Brigit e eu estávamos nos sentindo melhor do que nos sentíamos há
dias. Nosso moral levantara um pouco porque alguém estava sendo bom
conosco, mesmo que esse alguém fôssemos apenas nós mesmas.
Brigit decretou que era minha vez de experimentar o sofá transparente.
O que foi muito bom, até onde pode ser bom sentir a parte de trás das coxas
suando no vinil.
Até que chegou a hora de me levantar para ir ao banheiro.
Porque não consegui.
— Não consigo me levantar — disse, alarmada. — Estou grudada nessa
bosta de sofá.
— Claro que não está — disse Brigit. — Basta jogar o corpo para a
frente que você sai.
Mas minhas mãos não conseguiam se apoiar no plástico molhado de
suor. E minhas coxas estavam atoladas nele.
— Santo Deus — murmurou Brigit, levantando-se e me agarrando pelo
braço. — Será que é pedir demais, sair para tomar um drinque em paz e...
Puxou-me com força, mas nem assim consegui sair.
Brigit dobrou os joelhos, agachando-se como se participasse de um
cabo-de-guerra, e deu outro puxão violento.
Dolorosamente, como se perdesse uma camada de pele — que pena
que eu recentemente gastara cinqüenta dólares depilando as pernas a cera,
quando isso teria dado conta do recado perfeitamente —, comecei a me separar
do sofá. Com um ruído violento de chupão, que fez todos no recinto levantarem
os olhos de seus copos, atônitos, Brigit conseguiu me descolar.
E, quando saltei como uma rolha de champanhe, com um estouro final
que fez Brigit cair sentada para trás, com quem dou de cara, senão Luke-drogade-
Costello?
Arqueando a sobrancelha numa expressão de desprezo, ele disse "Oi,
Rachel", num tom malicioso, humilhante.
Então sorriu, com um brilho nos olhos que me apavorou.
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