Nesse domingo, eu tinha permissão para receber visitas. Minha
esperança era de que Anna viesse me visitar com um ou dois narcóticos
malocados na sua distinta pessoa.
Não me preocupava mais que as drogas aparecessem em algum exame
de sangue surpresa. Pelo contrário, teria adorado que me pusessem para fora.
Para o desagradável caso de Anna não vir, eu já deixara uma carta
escrita para ela, a ser levada por papai ou outra pessoa, solicitando que
passasse sebo nas canelas rumo a Wicklow com uma sacola de drogas debaixo
de cada braço.
Se por um lado eu estava ansiosa por receber visitas, por outro duas
coisas me preocupavam. A primeira era o medo do espalhafato eufórico que
Helen faria quando soubesse que não havia academia, piscina ou massagens.
Nem qualquer celebridade hospedada lá naquele momento.
Mas, pior do que isso, estava com medo de minha mãe. Tinha pavor de
ver seu olhar decepcionado, martirizado.
Talvez ela não venha, pensei. Senti um lampejo de esperança antes de
compreender que sua ausência seria infinitamente pior do que sua presença.
Por fim, quando meus nervos já estavam quase saindo pela pele,
avistei nosso automóvel dobrando a entrada para carros. Mal pude acreditar
quando vi mamãe sentada no banco da frente ao lado de papai. Esperava vê-la
deitada no banco traseiro, coberta por uma colcha, para o caso de alguém vê-la e
somar dois mais dois. Em vez disso, lá estava ela, na maior, sentada muito
empertigadinha, sem sequer um par de óculos escuros, uma balaclava ou um
sombrero. Senti uma alegria enorme, até perceber que só havia uma pessoa no
banco traseiro do automóvel. Torci para que fosse Anna. Anna e um monte de
drogas.
Mas, quando a porta do carro se abriu, até de minha janela deu para
ouvir as vozes alteradas pela discussão. Profundamente decepcionada,
compreendi que a pessoa em questão era Helen.
— Por que você tem que dirigir tão devagar? — gritou ela, descendo do
carro. Usava um sobretudo comprido e um gorro de pele, no estilo de Dr. Jivago.
Estava simplesmente linda.
— Porque as estradas estão cheias de gelo, que joça! — gritou papai
para ela, nervoso, com o rosto vermelho. — Vai pro inferno e me deixa dirigir do
meu jeito.
— Parem com isso, parem com isso — sussurrou mamãe entre os
dentes, carregada de sacolas. — Que é que vão pensar de nós?
— Quem se importa? — O vento frio carregava a voz de Helen. — São
uns bebuns de merda, todos eles.
— PÁRA COM ISSO! — Mamãe deu um tranco no ombro de Helen.
— Não enche! — Helen devolveu seu tranco. — Por que está tão
nervosinha? Só porque sua filha também é uma bebum de merda?
— Ela não é uma bebum de merda — ouvi mamãe dizer.
— Ihhh, olha o palavrão — entoou Helen. — É pecado, você vai ter que
contar isso quando se confessar.
— Seja como for, você tem razão — prosseguiu, triunfante. — Ela não é
uma bebum de merda, é uma cheirum de merda!
Papai e mamãe adquiriram uma expressão apática, e abaixaram as
cabeças.
Eu assistia à cena de minha janela, imóvel, tomada por uma mágoa
inesperada. Tive vontade de matar Helen. Tive vontade de matar meus pais. Tive
vontade de me matar.
Trocamos abraços constrangidos, os únicos que conhecíamos, e
sorrimos. Meus olhos estavam rasos d'água.
Helen me cumprimentou dizendo "MEU DEEEEUS, estou morta de
frio". Mamãe me cumprimentou dando um empurrão em Helen e dizendo "Não
tome o nome do Senhor em vão".
Papai me cumprimentou dizendo "'dia, dona". Na hora não prestei
muita atenção a isso.
Antes que se abrisse um abismo na conversa, mamãe enfiou uma
sacola na minha mão.
— Trouxemos umas coisas.
— Que ótimo — disse eu, vistoriando o interior da sacola. — Batatinhas
fritas, batatinhas fritas e... mais batatinhas fritas. Obrigada.
— E chocolates — disse mamãe. — Tem que ter dez barras de chocolate
aí.
Tornei a olhar.
— Acho que não — disse.
— Mas eu botei aí dentro — disse mamãe. — Lembro que fiz isso hoje
de manhã, tenho certeza absoluta.
— Ah, mãe — disse Helen, apiedada, sua carinha de gato o retrato da
inocência —, sua memória já não é mais o que era antigamente.
— Helen! — chamou mamãe, ríspida. — Devolve os chocolates! Helen
abriu a bolsa, de má vontade.
— Mas por que não posso ficar com nenhum?
— Você sabe por quê — disse mamãe.
— Porque não sou uma drogada — disse Helen. Todos estremecemos.
— Bom — ameaçou ela —, isso pode ser resolvido.
— Aceita um? — ofereci, quando ela os devolveu, mal-humorada.
— Que tal três?
Mostrei o lugar a eles, entre orgulhosa e tímida. Envergonhada apenas
quando diziam coisas do tipo "Este lugar bem que precisa de uma mão de tinta,
está quase igual à nossa casa". Salvei mamãe, que quase ia tropeçando no Meu
Pequeno Pônei de Michelle.
— Tem alguém famoso aqui? — cochichou Helen para mim.
— No momento, não — respondi, com ar displicente. Para meu grande
alívio, ela apenas soltou um "Puta-merda" e encerrou o assunto.
Levei os três para o refeitório. Estava atulhado de gente até as vigas do
teto e parecia o Dia do Juízo Final. Conseguimos nos espremer até o finzinho de
um banco.
— Bão — disse papai —, é tudo danado de frumoso.
— Como é que é, pai?
— Danado de frumoso.
— Que é que ele está dizendo? — perguntei a mamãe.
— Que é tudo danado de formoso — explicou ela.
— Mas por que você está falando desse jeito ridículo? — perguntei a
ele. — E, de mais a mais, não é, não. Está longe de ser danado de frumoso.
— Oklahoma* — sussurrou mamãe. — Ele conseguiu uma ponta na
montagem do grupo teatral de Blackrock. Está praticando a maneira de falar dos
matutos americanos, não é, Jack?
Oklahoma -Musical de 1943 da dupla Oscar Hammerstein e Richard
Rodgers.
— Craro que tô, dona. — Deu um peteleco na aba de um chapéu
imaginário.
— Ele tem deixado a gente doida — acrescentou mamãe. — Se eu tiver
que ouvir que o milho está da altura do olho de um elefante mais uma vez, vou
dar um tiro no elefante.
— Apeia do cavalo — disse papai, com voz arrastada —, e toma o seu
leite.
— E isso não é de Oklahoma, não é mesmo — bronqueou ela. — Isso é
daquele outro camarada, que diz go on punk, make my day — como é mesmo o
nome dele?
— Sylvester Stallone? — arriscou papai. — Mas esse não é... Ora,
bolas. Estou esquecendo de praticar. — Virou-se para mim. — É o método de
Stonislavski e Stressbourg, sabe? Tenho que viver, comer e respirar o meu papel.
NOTA: A autora ironiza os conhecimentos dos pais de Rachel sobre
cinema. A célebre catchphrase, na realidade de Clint Eastwood, é "Go ahead.
Make my day." [Anda, vai. Me dá essa alegria."]
— Há uma semana que ele come feijão na hora do chá — contou Helen.
De repente, me ocorreu que talvez não fosse surpreendente que eu
estivesse num centro de reabilitação.
— Meu Deus! — exclamou Helen. — Quem é aquele cara?
Seguimos o fio de seu olhar. Chris estava na outra ponta.
— Nada mau! Eu não chutaria ele da cama por peid... Ai! Por que me
bateu? — perguntou a mamãe.
—Já te mostro o que é uma boa cama! — ameaçou mamãe. Nesse
momento, notou que algumas pessoas olhavam para ela, e abriu um largo
sorriso do tipo tapa-buraco, que não enganava ninguém.
— São as pernas dele, não são? — disse Helen, pensativa. — Ele joga
futebol?
— Não sei.
— Descobre — ordenou.
Continuamos sentados, num silêncio constrangido, a alegria inicial do
encontro já arrefecida. Eu estava morta de vergonha por não estarmos
conversando em voz baixa, murmurada, como todos os outros.
Vez por outra, tentávamos engatar uma conversa dizendo alguma coisa
do tipo "Eles têm te alimentado direitinho?" ou "Fevereiro é um mês horrível, não
é?".
Desde que chegara, mamãe não parava de olhar de soslaio para
Chaquie, seus cabelos dourados, sua maquiagem perfeita, sua profusão de jóias,
suas roupas caras. Por fim, me cutucou, num cochicho de peça teatral que
provavelmente ouviram na Noruega:
— Que é que há com ela?
— Um pouco mais alto e daria para a gente dançar — respondi,
Ela me lançou um olhar terrível.
De repente, seu rosto ficou branco e ela virou a cabeça bruscamente.
— Pelo Sagrado Coração de Jesus — entoou.
— Que foi? — Todos nos viramos e espichamos para ver o que ela
estava olhando.
— Não olhem — sussurrou. — Fiquem de cabeça baixa.
— Qu-ê? Queeeeem? Ela se voltou para papai.
— Philomena e Ted Hutchinson. O que estarão fazendo aqui? E se nos
virem?
— Quem são eles? — gritamos eu e Helen.
— Dois véio conhecido do seu véio e da sua véia — respondeu papai,
— E de onde vocês se conhecem?
—Do clube de golfe — disse mamãe. — Que os santos nos protejam,
estou morta de vergonha.
— Bão, num foi lá que nóis conheceu eles — disse papai, com sua
dicção arrastada. — O negócio foi o seguinte. O buldogue deles... quer dizer, o
burdogue deles fugiu, nóis achou o bicho e trusse de vorta...
— Ai, meu Deus, eles estão vindo para cá — disse mamãe, parecendo
prestes a desmaiar.
Eu não estava me sentindo bem. Para começo de conversa, se ela tinha
tanta vergonha de eu estar lá, gostaria de saber por que me obrigara a vir.
Pelo horrível sorriso meloso que sapecou na cara, deduzi que ela e o
casal tinham acabado de se ver.
— Ah, olá, Philomena — deu um sorriso amarelo.
Virei-me. Era a mulher que eu tinha visto sentada ao lado de Chris no
domingo anterior. Sua mãe, presumi. Estava lidando com a situação com muito
mais desenvoltura do que mamãe.
— Mary — soltou uma gargalhada —, eu jamais sonharia que você é
uma alcoólatra.
Mamãe se obrigou a rir.
— Por que você está internada, Philomena? Viciou-se em corridas de
cavalos?
Mais gargalhadas de dar hérnia, como se estivessem numa festa. Davy,
o jogador, estava no outro extremo da mesa. Sua expressão desolada fez brotar
em mim um lampejo de instinto protetor.
— Nosso filho está aqui — disse Philomena. — Para onde ele foi?
Cristopher!
Não restava dúvida, era a mãe de Chris. Ótimo. Não havia nenhum mal
que os pais dele conhecessem os meus. Poderia até vir a calhar, caso ele não me
telefonasse quando saíssemos de lá. Eu poderia usar a desculpa de entregar um
pote de plástico à Sra. Hutchinson, para vê-lo. Mamãe fatalmente precisaria de
um portador para entregar um pote de plástico a Sra. Hutchinson, um dia
depois de eu sair da clínica. Mamãe e suas amigas viviam trocando potes de
plástico umas com as outras. Bolo de chocolate com recheio de suspiro, salada
de repolho, esse tipo de coisas. Pareciam fazer pouco mais do que isso.
Mamãe tentou fazer algumas apresentações.
— Nossa filha, Claire... — gesticulou em minha direção.
— Rachel — corrigi-a.
— ...e Anna, não, a outra... Helen.
Helen escusou-se educadamente com o Sr. e a Sra. Hutchinson,
dizendo-lhes, em tom cúmplice, "Caraca, tô quase me mijando nas calças", e
saiu de fininho. Pouco depois, fui atrás dela. Não que eu não confiasse nela, era
só que eu... não confiava nela.
Estava sentada nas escadas, literalmente cercada de homens. O
refeitório devia estar cheio de mulheres e filhos abandonados. Um dos homens
era Chris. Se isso não chegou a me surpreender, certamente também não me
alegrou.
Ela estava brindando sua platéia com histórias de suas bebedeiras.
— Quantas vezes já não acordei sem me lembrar como tinha chegado
em casa — gabou-se.
Ninguém tentou desbancá-la com algum comentário do tipo "Isso não é
nada, quantas vezes já não acordei sem me lembrar se estava vivo ou morto",
como eles tinham todo o direito de fazer.
Mas, em vez disso, cumulavam-na de sugestões entusiasmadas. Que
ela se internasse no Claustro, havia vagas para mulheres no momento, havia
uma cama dando sopa no quarto de Nancy e Misty...
— E você sempre pode apelar para a minha cama, em caso de aperto —
sugeriu Mike. Tive um acesso de ódio. Sua pobre mulher, oprimida carregadora
de biscoitos, estava a apenas alguns metros dali.
Clarence tentou alisar o cabelo de Helen.
— Pode parar — disse ela, ríspida. — A menos que me pague dez libras.
Clarence fez menção de revirar o bolso, mas Mike o impediu, pondo a
mão em seu braço e dizendo:
— Ela está brincando.
— Não estou, não — replicou Helen.
Em meio a todo esse furor, eu observava o rosto de Chris, enciumada.
Queria ver como ele reagia a Helen. Bem, o que eu realmente queria ver era
Chris não reagindo a Helen.
Mas flagrei um ou dois olhares entre os dois cuja pinta não me
agradou nada. Pareciam carregados e significativos.
Sentia-me angustiada e com ódio de mim mesma, por sempre me ver
reduzida a mais supina insignificância na presença de qualquer uma das
minhas irmãs. Até mamãe me roubava a cena, às vezes.
Como uma idiota, eu tinha achado que o impacto que surtira em Chris
era forte o bastante para que eu não desaparecesse à sombra dos encantos de
Helen. Mas me enganara, mais uma vez. Tive aquela sensação terrível, minha
velha conhecida, de "Quem você está tentando enganar?".
Permaneci entre os homens, obrigando-me a participar da hilaridade
geral, sentindo-me a um tempo inexistente e elefantina.
Estava tão transtornada que, quando Helen já estava de saída, esqueci
de lhe entregar a carta para Anna, pedindo-lhe que viesse me visitar com um
monte de drogas. E mais tarde, quando pedi um selo a Celine, ela respondeu:
"Claro. Traga a carta para mim que, depois de lê-la, aviso você se tem permissão
para pô-la no correio."
Fiquei tão puta da vida que marchei direito para o guarda-louça onde
ficavam os doces, escancarei a porta e esperei pela concussão cerebral que
sofreria com a avalanche de chocolate das noites de domingo. Por um momento,
titubeei, tentando apelar para minha força de vontade. Mas então Chris disse
"Meu Deus, aquela sua irmã é um estouro", e a velha mágoa se abateu sobre
mim, por eu ser eu mesma. E não Helen. Ou alguma outra pessoa. Qualquer
outra pessoa, qualquer uma, menos eu.
Chocolate, pensei, angustiada e infeliz. Isso vai fazer com que eu me
sinta melhor, já que não há nenhuma droga disponível.
— Ela é ótima, não é? — consegui dizer.
Peguei Celine sorrindo para si mesma, enquanto fingia se ocupar com
uma tapeçaria que sempre tinha nas mãos quando nos espionava.
Incapaz de me conter, apanhei uma barra de chocolate com frutas e
nozes tão grande, que dava para navegar até os Estados Unidos a bordo.
— De quem é? — perguntei.
— Minha — disse Mike. — Mas manda ver. Terminei de comê-la em
uns vinte segundos.
— Batata frita — berrei para o pessoal. — Preciso de alguma coisa
salgada.
Eu podia ter comido as batatinhas que mamãe me trouxera, mas
queria atenção e paparicos, não apenas salgadinhos.
Don correu até mim com seis pacotes de batatas fritas sabor cebola,
Peter gritou, de longe, "Posso te arranjar uns biscoitinhos salgados", Barry, o
Bebê, disse "Se for de fato uma emergência, posso conseguir um saco de
batatinhas dietéticas", e Mike murmurou em voz baixa, de modo a que eu
ouvisse e Celine não, "Tenho uma coisa gostosa e salgadinha dentro das minhas
calças que você pode chupar".
Esperei que Chris me oferecesse alguma coisa, para indicar que ainda
estava consciente da minha existência, mas ele não disse absolutamente nada.
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