quarta-feira, 6 de julho de 2011

Férias!! - MARIAN KEYES Cap.29


O medo de que o questionário fosse lido em voz alta para o grupo na
manhã seguinte quase me deixou de cama. Por favor, Deus, rezei. Faço tudo que
você quiser, mas afasta de mim esse cálice.
Só que os internos pareciam estar do meu lado, pelo menos a maioria
deles. Quando desci para fazer o café da manhã, Don berrou:
— Que é que nós QUEREMOS? Ao que Stalin respondeu:
— Os colhões de Luke Costello para fazer de brincos. Então Don
berrou, com os olhos saltando fora do crânio:
— E quando nós QUEREMOS? E Stalin respondeu:
—Já!
Dramáticas variações sobre o tema foram tecidas durante todo o café
da manhã. Entre os itens desejados, estavam as rótulas de Luke Costello para
fazer de cinzeiros, o rabo de Luke Costello para fazer de capacho, o pinto de
Luke Costello para fazer de pulseira e, é claro, os colhões de Luke Costello num
porta-ovos, para praticar tiro ao alvo, para jogar golfe, para fazer malabarismo,
para jogar bolas de gude e para enfiar na boca de quem ousasse defendê-lo.
Fiquei profundamente comovida com essas manifestações de
solidariedade. Das quais, é claro, nem todos participaram. Mike foi um dos que
ficaram de fora, com uma expressão inescrutável em sua cara feia de granito.
Quase todos da velha-guarda, que já estavam lá há mais de um mês,
observavam-nos calados, em sinal de desaprovação. Frederick, que atingira a
vetusta idade de seis semanas, disse, entre muxoxos e exclamações: "Você não
devia estar culpando ninguém, e sim procurando descobrir qual é o seu papel
nisso tudo." Mas todo mundo ficou do meu lado. Fergus, Chaquie, Vincent, John
Joe, Eddie, Stalin, Peter, Davy, o jogador, Eamonn e Barry, o Bebê, gritaram
juntos: "Ah, cala a boca." Até Neil gritou, embora eu dispensasse de bom grado
seu apoio.
Observava Chris atentamente, desesperada por algum sinal que
indicasse que ainda era meu amigo, e fiquei magoada por ele não dizer que
queria os colhões de Luke Costello para nada. Mas, para meu alívio, ele também
não parecia ter-se aliado aos veteranos que arrotavam santidade. Quando já
estávamos a caminho da sessão de terapia em grupo — eu com cara de quem vai
enfrentar um pelotão de fuzilamento —, ele segurou meu braço.
— Bom-dia — disse. — Posso dar uma palavra rápida com você?
— Claro — respondi, desesperada para agradar e me perguntando se
ele ainda gostava de mim, mesmo sabendo que eu era uma mentirosa.
— Como é que está se sentindo hoje? — Ele estava lindo, o azul-claro
de sua camisa de chambray realçando a cor dos seus olhos.
— Bem — respondi, ressabiada.
— Posso fazer uma sugestão? — ele perguntou.
— Pode — respondi, mais ressabiada ainda. Não achava que fosse ser
uma daquelas em que os ingredientes principais eram ele, eu, nossa nudez e um
preservativo.
— Bom — ele prosseguiu —, sei que você acha que não precisaria estar
aqui, mas por que não tenta aproveitar ao máximo o que o lugar tem a oferecer?
— Em que sentido? — perguntei, de pé atrás.
— Sabe aquela história da nossa vida que nos mandam escrever depois
que já estamos aqui há algum tempo?
— Sei — respondi, lembrando o texto que John Joe lera durante minha
primeira sessão de terapia em grupo.
— Bom, mesmo que você não seja uma viciada — disse Chris —, ainda
assim pode ser muito útil.
— Como?
— Sabe como é — ele disse, com um sorriso irônico que fez minhas
entranhas se revolverem —, todo mundo pode colher benefícios da psicoterapia.
— Todo mundo? — ergui a voz, surpresa. — Até você?
Ele riu, mas de um jeito triste que fez com que eu me remexesse,
angustiada.
— Até eu — assentiu, com um olhar de quinze quilômetros de
distância, que o levou para muito longe de mim. — Todo mundo precisa de uma
ajudinha para ser feliz.
— Feliz?
— É, feliz. Você é feliz?
— Ora, claro — respondi, segura de mim. — Eu me divirto à beça.
— Não, feliz — ele repetiu. — Você sabe, contente, serena, em paz
consigo mesma.
Não tinha certeza absoluta do que ele estava falando. Não só não
conseguia me imaginar contente ou serena, como, principalmente, não queria
me sentir assim. A coisa tinha um ar simplesmente sacai.
— Eu me sinto ótima — disse, escandindo as palavras. — Sou
felicíssima, a não ser por algumas coisas na minha vida que precisam ser
mudadas...
Por exemplo, todas — o pensamento se impôs à consciência. Minha
vida amorosa, minha carreira, meu peso, minhas finanças, meu rosto, meu
corpo, meus dentes. Meu passado. Meu presente. Meu futuro. Mas, tirando
isso...
— Pense na hipótese de escrever a história da sua vida — sugeriu
Chris. — Que mal pode fazer?
— Tá — concordei, a contragosto.
— Com o questionário do seu ex-namorado, já são duas coisas para
você pensar. — Deu-me um breve sorriso e foi embora.
Confusa, fiquei olhando para ele enquanto se afastava. Não conseguia
entender o que estava se passando. Quero dizer, ele se sentia atraído por mim
ou não?
Sentei-me — perdera as boas poltronas — e tentei descobrir pela
expressão de Josephine se estava ferrada ou não. Mas, no rastro da visita de
Emer, as atenções estavam voltadas para Neil. Fiquei satisfeitíssima quando o
grupo trouxe à baila algumas das contradições gritantes entre o que Emer nos
contara sobre Neil e o que Neil nos contara sobre si próprio.
Neil ainda insistia que, se algum dos presentes vivesse com Emer,
baixaria o braço nela também. Porém, não apenas nenhum dos outros estava
sendo tão duro quanto eu gostaria de ser, como ficavam tentando demonstrar
para Neil que o que ele dizia não estava certo. Cortaram um dobrado durante a
manhã inteira, Mike, Misty, Vincent, Chaquie e Clarence. Até mesmo John Joe
conseguiu dizer algumas palavras sobre como jamais levantara a mão para um
novilho.
Mas Neil recusava-se obstinadamente a admitir o que quer que fosse.
— Você me enoja, seu brutamontes — explodi, de repente, sem
conseguir me conter.
Para minha surpresa, não se seguiu o previsível coro de aprovação dos
outros internos. Apenas voltaram para mim o mesmo olhar piedoso que antes
lançavam para Neil.
— É mesmo, Rachel? — perguntou Josephine. No ato desejei não ter
dito nada. — Você não gosta do lado truculento de Neil?
Fiquei calada.
— Bem, Rachel — ela prosseguiu. Senti que alguma coisa desagradável
estava a caminho. — As características que mais nos desagradam-nos outros
são as mesmas de que menos gostamos em nós mesmos. Esta é uma boa
oportunidade para você examinar o brutamontes que tem dentro de si.
A gente não podia peidar nesse lugar sem que enquadrassem o peido
dentro de alguma interpretação ridícula, pensei, indignada. E ela estava
enganada. Eu era a pessoa menos truculenta que conhecia.
Para meu grande alívio, à tarde Neil voltou a ser o centro das atenções.
E, mais uma vez, nem uma palavra sobre meu questionário.
Josephine decidiu que os internos já tinham tido muitas chances de
ajudar Neil, e que era chegada a hora de apelar para a artilharia pesada — ela.
Foi fascinante. Josephine se reportou à história da vida de Neil, que ele
lera numa sessão anterior à minha chegada. Com a máxima exatidão, ela foi
desenrolando sua vida, como quem puxa o fio solto de um suéter.
— Você não disse quase nada sobre seu pai — observou, simpática. —
Achei essa omissão muito interessante.
— Não quero falar sobre ele — disparou Neil.
—Isso é o óbvio — retrucou ela. — E é exatamente a razão pela qual
devemos falar sobre ele.
— Não quero falar sobre ele — Neil tornou a dizer, dessa vez mais alto.
— Por que não? — Os olhos de Josephine brilhavam como os de um
cachorro que ganhou um osso.
— Não sei — disse Neil. — Não quero e pronto.
— Vamos descobrir por que você não quer, está bem? — disse
Josephine, em tom de falsa camaradagem.
— NÃO! — insistiu Neil. — Deixa prá lá.
— Ah, não — ela insistiu. — Deixar prá lá é a última coisa que devemos
fazer.
— Não há nada a dizer. — O rosto de Neil tornara-se sombrio.
— É óbvio que há muito a dizer — rebateu Josephine. — Por que outro
motivo você estaria tão transtornado? Agora, me diga, seu pai bebia?
Neil assentiu, desconfiado.
— Muito?
Outro aceno afirmativo e desconfiado.
— Esse é um detalhe muito importante para ser omitido da história da
sua vida, não é? — comentou Josephine, astuta.
Neil deu de ombros, nervoso.
— Quando foi que ele começou a beber muito? Houve uma longa
pausa.
— Quando? — ela repetiu a pergunta, dura. Com um sobressalto, Neil
respondeu:
— Não sei. Sempre.
— Quer dizer que é uma coisa com a qual você conviveu desde
pequeno?
Neil assentiu.
— E a sua mãe? — prosseguiu Josephine. — Você parece gostar muito
dela.
A dor anuviou o rosto de Neil.
— E gosto — disse ele, com uma voz rouca e emocionada que me
surpreendeu. Pensava que o único ente amado de Neil era ele próprio. Que
provavelmente gritava o próprio nome quando gozava.
— Ela bebia?
— Não.
— Não em companhia do seu pai?
— Não, não era assim. Ela tentava impedi-lo.
Um profundo silêncio tomara conta do aposento.
— E o que acontecia quando ela tentava impedi-lo? Houve um silêncio
tenso, terrível.
— O que acontecia? —Josephine tornou a perguntar.
— Ele batia nela — respondeu Neil, as lágrimas embargando sua voz.
Como é que ela sabe?, me perguntei, surpresa. Como Josephine sabia
as perguntas que devia fazer?
— Isso acontecia com freqüência?
Houve um silêncio torturado antes de Neil disparar:
— Acontecia.
Senti a mesma repugnância do dia anterior, quando descobri que ele
batia em Emer.
— Você é o filho mais velho da família — disse Josephine a Neil. —Por
acaso não tentava proteger sua mãe?
Os olhos de Neil estavam longe, em algum lugar apavorante do
passado.
— Tentava, mas era pequeno demais para poder ajudar. Dava para
ouvir no andar de baixo... sabe? Os baques. Os tapas, estalos... — Ele fez uma
pausa e abriu a boca, como se fosse vomitar.
Pôs a palma da mão sobre a boca aberta, diante de nossos olhos
esbugalhados de terror.
— E ela tentava não gritar, sabe? — conseguiu dizer, esboçando um
sorriso contrafeito. — Para não assustar a gente, no andar de cima.
Estremeci.
— E eu tentava distrair os outros, para que não percebessem o que
estava acontecendo, mas não fazia nenhuma diferença. Mesmo não conseguindo
escutar nada, ainda assim podiam intuir o meu medo.
Minha testa estava coberta de suor.
— Sempre acontecia nas sextas à noite, de modo que nosso medo ia
crescendo, à medida que passavam os dias da semana. E eu jurava que assim
que crescesse mataria o desgraçado, faria com que ele implorasse por
misericórdia, como obrigava mamãe a fazer.
— E fez?
— Não — Neil a custo respondeu. — O filho-da-puta sofreu um
derrame. Agora, passa o dia inteiro sentado numa cadeira, e mamãe lá,
paparicando ele. Eu vivo dizendo a ela para ir embora, mas ela não vai e isso me
deixa louco.
— Como você se sente em relação ao seu pai agora? — perguntou
Josephine.
— Ainda tenho ódio dele.
— E como você se sente em relação ao fato de ter ficado exatamente
igual a ele? — perguntou Josephine. A brandura de seus modos não conseguiu
ocultar a natureza apocalíptica da pergunta.
Neil a encarou e, por fim, deu um sorriso trêmulo.
— O que você quer dizer?
— Quero dizer, Neil — respondeu ela, enfática —, que você é
exatamente como seu pai.
— De jeito nenhum — gaguejou Neil. — Não me pareço em nada com
ele. Sempre jurei que seria completamente diferente dele.
Eu estava perplexa com a completa indiferença de Neil à realidade dos
fatos.
— Mas você é igualzinho a ele — observou Josephine. — Comporta-se
exatamente como ele. Bebe demais, brutaliza sua mulher e seus filhos e está
criando uma futura geração de alcoólatras.
— NÃO! — urrou Neil. — Não estou fazendo nada disso! Sou o oposto
do tipo de homem que meu pai era.
— Você bate na sua mulher como seu pai batia na sua mãe —
prosseguiu Josephine, implacável. — E Gemma — ela é a mais velha, não é? —
provavelmente tenta tapar os ouvidos de Courtney para que não escute o
barulho, como você fazia com seus irmãos.
Neil quase teve uma crise histérica. Comprimiu as costas contra o
espaldar da cadeira, o terror estampado em seu rosto como se estivesse
encurralado contra uma parede, cercado por pitbulls latindo, ferozes, a acuá-lo.
— Não! — gritou. — Não é verdade!
Seus olhos estavam horrorizados. Ao observá-lo, tive a chocante
consciência de que Neil realmente acreditava que não era verdade.
Ali e naquele instante, pela primeira vez na minha vida, compreendi
plenamente o significado daquela expressão tão usada e abusada hoje em dia —
negação. O medo me enregelou até as entranhas. Neil não conseguia enxergar,
honesta e verdadeiramente não conseguia enxergar, e a culpa não era sua.
Um raio de compaixão brotou em mim. Continuamos em silêncio. O
único som que se ouvia eram os soluços de Neil.
Finalmente, Josephine tornou a falar.
— Neil — disse, com naturalidade —, compreendo que sua dor é
imensa, neste momento. Fique com os sentimentos. E gostaria de lhe pedir que
levasse algumas coisas em consideração. Aprendemos padrões de
comportamento com os nossos pais. Mesmo quando detestamos esses pais e seu
comportamento. Você aprendeu de seu pai como um homem deve se comportar,
mesmo que, inconscientemente, tivesse ojeriza à maneira como ele se
comportava.
— Sou diferente! — urrava Neil. — Comigo não é a mesma coisa.
— Você foi uma criança traumatizada — prosseguiu Josephine. — E,
sob alguns aspectos, ainda é. Isso não perdoa o que fez com Emer, seus filhos e
Mandy, mas explica por que o fez. Você pode aprender com esse fato, pode curar
a ferida em seu casamento e, principalmente, em si mesmo. É muita coisa para
assumir, ainda mais considerando a gravidade da sua resistência, mas,
felizmente, você ainda tem mais seis semanas pela frente.
"E quanto ao resto de vocês — ela correu um olhar severo pelo
aposento —, nem todos vêm de lares destruídos pelo alcoolismo, mas não os
aconselho a usarem isso como desculpa para negar a sua dependência, seja do
álcool, das drogas ou do que for."

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