À noite, quando fui dormir, estava me sentindo confusa.
Luke não é tão mau assim, uma vozinha observou. Você mentiu em
relação a ele para que todo mundo ficasse do seu lado.
Ele é mau, sim, insistiu outra voz. Olha só o que fez com você. Ele te
humilhou, te meteu numa baita encrenca, se voltou contra você. Ele te rejeitou
antes mesmo de você ir embora de Nova York e voltou a rejeitar com aquela
porra de questionário. Portanto, ele é mau, sim. Talvez não exatamente do modo
como você o pintou para o pessoal lá embaixo, hoje à noite. Mas ele é mau.
Satisfeita, virei-me e tratei de dormir.
Mas não consegui parar de pensar nele.
Agora que refletia sobre o passado, tinha a impressão de que ele
sempre fora totalmente neurótico em relação ao meu consumo de drogas.
Nunca me esqueci do jeito como se comportara na minha festa. Que
cara-de-pau! E nem ao menos tinha sido convidado!
Brigit e eu demos a tal festa mais ou menos duas semanas depois do
descalabro dos Rickshaw Rooms.
Na realidade, a idéia de dar a festa foi minha. Estava tão cheia de não
ser convidada para as festas descoladas no East Village e no SoHo, que decidi
dar eu mesma uma festa e convidar cada pessoa bonita, bem relacionada e com
um emprego interessante que eu conhecia. Assim, quando dessem uma festa,
teriam que me convidar.
Brigit e eu fizemos uma seleção cuidadosa e estratégica.
— E Nadia...?
— Nadia, a desbundada? Que é que tem ela?
— Ela trabalha na Donna Karan. Será que a palavra desconto significa
alguma coisa para você?
—Não dá para a gente só convidar garotas feias e gordas?
— Não. Não existem. Bom, e quanto a Fineas?
— Mas ele é só um barman.
— Sim, mas pense a longo prazo. Se ficar nosso chapa, vai arranjar
uns drinques para nós quando estivermos duras. Coisa que, me corrija se eu
estiver errada, acontece o tempo todo.
— O.k., Fineas fica. Carvela?
— Nem pensar! Andrew, o publicitário, era meu, até ela entrar em cena
com aquele piercing na língua.
— Mas ela conhece Madonna.
— Só porque uma pessoa fez as unhas da outra uma vez, isso não quer
dizer que a conheça. Ela não vem, o.k.? Precisamos de homens hetero, é desses
que estamos em falta.
— E quando foi que não estivemos?
— Helenka e Jessica?
— Claro. Se vierem. Filhas-da-puta sebosas.
Não convidamos os Homens-de-Verdade. Nem sequer nos passou pela
cabeça.
Na noite da festa, colamos três balões com durex na porta da frente,
cobrimos o abajur da sala com papel crepom vermelho e abrimos seis sacos de
batatas fritas. Embora já tivéssemos três CDs, pedimos mais três emprestados,
em homenagem à ocasião. Por fim, relaxamos, esperando que o deslumbrante
evento se desenrolasse.
Eu achava que a única coisa de que uma boa festa precisava era um
caminhão de bebidas e drogas. Embora não tivéssemos comprado nenhuma
droga para nossos convidados, sua disponibilidade e fartura estavam garantidas,
pois prometêramos exclusividade a Wayne, nosso amigo, vizinho e traficante. E
tínhamos uma quantidade homérica de bebidas entulhando a cozinha. Apesar de
tudo, porém, nosso apartamento não estava com a menor cara de festa.
Eu estava perplexa. Sentada na minha sala vazia e ecoante naquela
noite de sábado, eu me perguntava: Onde foi que eu errei?
— Vai ser ótimo, quando estiver cheio de gente — prometeu-me Brigit,
para logo em seguida morder o nó do dedo, soltando um gemido abafado de
angústia.
— Estamos perdidas, não estamos, Brigit? — perguntei, dando-me
conta da extensão de minha temeridade. Como pudera chegar a achar que era
digna de dar uma festa e convidar gente que trabalhava na butique de Calvin
Klein? — Nunca mais vamos almoçar nesta cidade.
Os convites diziam às pessoas para chegarem por volta das dez. Mas, à
meia-noite, o apartamento ainda parecia um cemitério. Brigit e eu estávamos
quase arrancando os cabelos.
— Todo mundo detesta a gente — disse eu, tomando vinho da garrafa.
— De quem foi a merda dessa idéia burra? — perguntou Brigit,
chorosa. — Eu achava que pelo menos Gina e sua turma viriam. Afinal, juraram
que viriam. As pessoas são tão falsas em Nova York.
Esperamos mais um pouco, desancando todo mundo que
conhecíamos, até gente que não tínhamos convidado. E entornando feio.
— Você convidou Dara? — ela indagou.
— Não — disse eu, na defensiva: — Achei que você ia convidar. E você,
convidou Candide?
— Não — ela rosnou. — Achei que você ia convidar.
— E onde é que está o filho-da-mãe do Salto Cubano? — acrescentou,
furibunda.
Na ocasião, Brigit, com sua acentuada queda pelos hispânicos, estava
tendo um caso intermitente com um cubano (rompe-reata-rompe). Quando ele se
comportava bem, ela o chamava de Nosso Homem em Havana. Quando se
comportava mal, ou seja, quase o tempo todo, chamava-o de Salto Cubano. Seu
nome era Carlos e eu o chamava de O Girador. Ele se achava um dançarino
fantástico, exibindo-se à menor provocação. Já era o bastante para fazer a
pessoa vomitar o almoço, a maneira como rebolava, dando todo tipo de guinada
exagerada com seus quadris minúsculos. Nos dias em que eu não o chamava de
O Girador, chamava-o de O Batedor-de-Estômago, para me ater ao tema da
rotação.
— E onde é que está Wayne? — indaguei. — Não vai adiantar nada o
pessoal vir, se ele não vier.
Era a ausência de Wayne que estava me deixando nervosa, mais do
que a de qualquer outra pessoa.
— Bota uma música aí.
— Não, porque assim a gente não vai ouvir a campainha.
— Bota uma música! A gente não quer que as pessoas pensem que
estão num velório.
— Um velório seria mais divertido! Refresca minha memória, de quem
foi mesmo essa idéia?
A campainha soou, estridente, interrompendo nosso acalorado bateboca.
Graças a Deus, pensei, com fervor. Mas era apenas O Salto Cubano,
com alguns de seus amigos igualmente minúsculos. Olharam com ar de dúvida
para os balões, as batatas fritas e a sala vazia e silenciosa, com sua
luminosidade rosada.
Enquanto Carlos punha um CD e Brigit lhe dizia muitas e boas, os
amiguinhos de Carlos me despiam com seus olhos castanhos e límpidos.
Dizia Brigit que Carlos era fantástico na cama e que tinha um pinto
piramidal. Ela adoraria que eu engrenasse com um de seus amigos, mas eu teria
preferido alugar minha vagina para um pardal fazer seu ninho.
A música estrugiu, alta demais para a sala vazia, abafando seus
"Desculpe, enamorada" e "Não tive culpa, querida".
— Toma. — Empurrei uma tigela de batatas fritas na mão de
Miguel. — Come uma batata e pára de me olhar desse jeito.
A música que Carlos pusera era latino-americana, daquelas de um
otimismo assassino, acompanhada por uma banda de vinte pistons.
Violentamente animada, evocando sol, areia, Rio, garotas de Ipanema e meninos
morenos de olhos brilhantes. Homens com mangas cheias de babadinhos,
chapelões de palha e aquela pseudo-gravata que não passa de um cadarço
amarrado no pescoço, sacudindo maracas. O tipo de música que chamam de
"contagiante". Sem dúvida, eu já contraíra o vírus e me sentia doente. Odiava
esse tipo de música.
A campainha tocou novamente, e dessa vez era mesmo um convidado.
A campainha tocou novamente e dez pessoas entraram em tropel, com
garrafas debaixo do braço.
Miguel me encurralou. Para minha surpresa, não consegui me esquivar
dele. O que lhe faltava em tamanho, sobrava em agilidade. Seus olhos estavam
na altura dos meus mamilos, e lá ficaram durante a maior parte da conversa.
— Rachel — entoou, com um sorriso brilhante e mestiço —, tem duas
estrelas faltando no céu, estão nos seus olhos.
— Miguel... — comecei
— Tomás. — Ele abriu um largo sorriso.
— ...tá, Tomás, o que for. Tem dois dentes faltando na sua boca, estão
no meu punho. Pelo menos é o que vem por aí, se não me deixar em paz.
— Rachel, Rachel. — Olhar triste. — Não quer um pouquinho de
latinidade dentro de você?
— Se o pouquinho de latinidade em pauta for você, não, não quero.
— Mas por que não? Sua amiga Brigit gosta de Carlos.
— Brigit não bate bem. E, além disso, você é pequeno demais, eu te
achataria.
— Ah, não — ele suspirou. — Nós cubanos somos mestres nas artes do
amor, você e eu vamos explorar muitas coisas, e não há o menor perigo de você
me achat...
— Por favor. — Levantei a mão. — Pára.
— Mas você é uma Deusa, no meu país seria idolatrada.
— E você é um cafajeste, no meu país trabalharia numa lanchonete.
Subitamente, tive uma idéia brilhante.
— Espera aí, você é cubano, não é? Tem alguma coca aí com você?
Felizmente, eu dissera a coisa errada. O que acontecia era que
recentemente o tio Paco de Tomás sofrerá um fracasso retumbante, quando a
guarda costeira dos Estados Unidos descobriu que estava a cargo de um iate
cheio de pó. No momento, Paco apodrecia numa penitenciária em Miami, e
Tomás ficou indignado com minha investigação de rotina.
— Eu não disse que você era um marginal — protestei. — Só pensei em
pedir, já que Wayne até agora ainda não chegou.
Tomás ainda falou mais um pouco sobre honra de família e outras
titicas do mesmo calibre, até que me deu outro olhar derretido, dizendo:
— Não vamos brigar.
— Não, tudo bem — tranqüilizei-o. — Não me importo de brigar com
você.
Ele estendeu o braço e segurou minha mão.
— Rachel — fitou-me nos olhos significativamente —, dance comigo.
— Miguel — disse eu —, não me obrigue a machucar você.
Nesse momento, graças a Deus, Wayne chegou.
Quase fui pisoteada no corre-corre de gente em sua direção, mas fiz
valer meu direito de anfitriã e fui a primeira a chegar até ele. Adorava cheirar
cocaína em festas. Não havia nada melhor para aumentar minha autoconfiança
e me dar coragem para falar com os homens. Adorava a sensação de
invencibilidade que provocava em mim.
Porque, num certo sentido, em algum canto do meu inconsciente, eu
sabia que era atraente. Mas era só depois de cheirar uma ou duas carreiras que
o reconhecimento desse fato se tornava consciente. A bebida até bastava. Mas a
cocaína era muito melhor.
E não era só eu, todas as outras pessoas pareciam muito melhores
quando eu enchia o tanque de cocaína. Mais bonitas, mais engraçadas, mas
interessantes, mais sensuais.
Brigit e eu compramos um grama, para rachar entre nós duas. O
prazer do teco começava muito antes de eu chegar a cheirar alguma coisa. O
simples ato de efetuar a transação com Wayne bastava para fazer disparar
minha adrenalina. As notas que eu pagava a ele estalavam de novas, mais
verdes do que o normal. Eu me desfazia delas com o maior prazer. Adorava a
sensação do pacotinho na palma da minha mão. Atirava-o para cima e para
baixo, sentindo seu volume mágico, compacto.
A parte menos divertida de cheirar coca era a fila para o banheiro das
mulheres no bar, no clube, onde quer que fosse. Assim, a grande vantagem de
dar uma festa no meu próprio apartamento era o fato de não haver nenhuma
necessidade de esperar. Direto para o meu quarto com Brigit, para abrir um
espaço em cima da penteadeira.
Brigit queria discutir a Crise Cubana.
— Não agüento mais — disse ela. — Pior do que ele me trata, é
impossível.
— Por que não rompe com ele? — sugeri. — Ele não tem o menor
respeito por você.
De mais a mais, eu achava que não pegava bem para mim dividir o
apartamento com uma amiga que namorava alguém tão brega quanto Carlos.
—Sou sua escrava — suspirou Brigit. — Não consigo resistir a ele. E
quer saber de uma coisa? Eu nem mesmo gosto dele.
— Nem eu — tornei.
Um erro. Jamais concorde com sua amiga quando o namoro dela
estiver passando por uma crise. Porque, no momento em que ela e o namorado
fizerem as pazes, ela vai azedar com você e perguntar: "Que negócio é esse de
você não gostar de Padraig /Elliot/ Miguel?" Aí ela conta para ele, os dois ficam
com ódio de você e resolvem fazer uma releitura da História, acusando-a de ter
tentado separá-los.
E te darão um gelo sempre que você estiver no mesmo aposento que
eles. Não te oferecerão mais uma fatia da pizza que compraram, embora a pizza
seja monstra, grande demais para os dois, e você esteja morta de fome, porque
não jantou. E farão com que você fique paranóica, preocupada com a hipótese de
resolverem morar juntos sem te avisar até a última hora, e você acabará sendo
obrigada a pagar meses e meses de aluguel aos dois até poder encontrar outra
pessoa com quem morar.
— Ah, claro, ele é ótimo — apressei-me em dizer. Então, o assunto saiu
totalmente da nossa cabeça, porque tínhamos cheirado duas carreiras gordas,
brancas, lindas.
Fui a primeira. Enquanto Brigit cheirava a sua, comecei a sentir a
comichão inicial no rosto e o torpor que vinham do primeiro teco. Virei-me para
o espelho e sorri para mim mesma. Meu Deus, como estava bonita, aquela noite.
Olha só como minha pele estava clara. Olha só como meu cabelo estava
brilhante. Olha só como meu sorriso estava encantador. Como eu estava com
uma cara safada, como estava sexy. De repente, percebi como meus dois caninos
salientes, que eu detestava, ficavam bem em mim. Como realçavam meu
charme. Sorri molemente para Brigit:
— Você está linda.
— Você também — disse ela.
Ato contínuo, dissemos em uníssono:
— Nada mal, para duas matutas.
E lá fomos nós circular por entre nossos convidados.
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