Terminei de comer o último biscoito de chocolate servido por Celine no
exato momento em que os outros foram liberados da sessão de terapia de grupo.
Hora de voltar para o meu próprio planeta.
Quando cheguei ao refeitório, sonolenta do choque e do açúcar, sentime
como se tivesse passado um longo tempo fora.
Neil, o babaca, ainda era o centro das atenções, cercado por um círculo
de gente que assentia com a cabeça em sinal de solidariedade e soltava
murmúrios de concordância. Concluí que eram todos bêbados mentirosos que
espancavam as esposas, como ele. Até as mulheres. Podia ouvi-lo se queixando:
"Estou me sentindo tão traído, não consigo acreditar no que ela fez comigo, e ela
é pirada, sabe, ela é quem deveria estar numa clínica psiquiátrica, não eu..."
Meu ódio deu uma curta trégua a Luke para poder se dedicar a Neil.
De um jeito ou de outro, seus segundos como a coisa mais interessante do
refeitório estavam contados. Eu fora vítima de uma desgraça, uma verdadeira
desgraça, que botaria a sua no chinelo. Sua desgraça não era digna de beijar a
sola do sapato da minha desgraça!
Tentando irradiar beleza e tragicidade, postei-me à porta.
Nesse exato instante, Chris ergueu os olhos.
— Pensei que você fosse para casa — disse ele, com um sorriso irônico.
Meu ar de heroína sorumbática vacilou. Ele fora tão bom comigo horas
antes, por que não estava sendo bom comigo agora?
— Anime-se — disse, alegre. — Tenho certeza de que vários dos rapazes
adorariam fazer uma massagem em você, uma daquelas a dois, de corpo inteiro.
Eles podem pedir um pouco de óleo de fritura para Sadie.
—Pedir, podem, mas não vão ganhar — comentou a própria, que por
acaso passava apressada, naquele momento.
Estremeci de vergonha, imaginando se estaria todo mundo rindo de
mim por ter achado que o Claustro era um spa.
— Não é isso — disse eu, magoada. — Aconteceu outra coisa.
Sentia-me quase feliz por Luke ter armado para cima de mim de uma
maneira tão cruel. Isso daria um jeito na antipática leviandade de Chris. Óleo de
fritura, ora, faça-me o favor! A coisa era séria.
— Chegou um questionário? — Ele alteou uma sobrancelha para mim.
Imediatamente me pus na defensiva, jogando a cabeça para trás:
— Como é que você sabe?
— Em geral chega um questionário, quando a pessoa está aqui há uns
dois dias — disse ele, com a expressão séria. Para meu alívio, parecia não estar
mais rindo de mim. — É aí que a merda bate no ventilador. Pelo menos, a
primeira prestação da merda. De quem é?
— Do meu namorado. — Meus olhos ficaram rasos d'água. — Quer
dizer, meu ex-namorado. Você não acreditaria no que ele escreveu — disse eu,
adorando as grossas lágrimas que escorriam por meu rosto. Contava com elas
para granjear simpatia, conforto e contato físico de Chris.
Dito e feito: ele me conduziu com toda a delicadeza até uma cadeira e
puxou outra para perto, a bondade estampada em seu rosto, nossos joelhos
quase se tocando.
Bingo!
— Quer saber? Provavelmente, eu acreditaria no que ele escreveu —
disse Chris, passando a mão no meu antebraço com uma intimidade que a um
tempo me constrangeu e agradou. — Estou aqui há duas semanas, e já ouvi um
monte de questionários. Tenho certeza de que você não é pior do que nenhum de
nós.
Eu estava um pouco aturdida com sua proximidade física, o calor de
sua mão grande e máscula subindo e descendo por minha manga, mas saí do
transe para protestar, chorosa:
— Você não entende, só estou aqui porque pensei que essa estalagem
de quinta categoria fosse um spa. Não há rigorosamente nada de errado comigo!
Em parte eu esperava que ele discordasse, mas ele apenas emitiu
alguns sons vagos, reconfortantes, daqueles que o veterinário faz para acalmar
uma vaca em trabalho de parto.
Fiquei aliviada.
E impressionada. Tantos homens ficam uma pilha de nervos quando
vêem uma mulher aos prantos. O que, é claro, também não é mau. Pode até ser
muito útil, às vezes. Mas o autocontrole de Chris era impecável.
Se ele é equilibrado assim quando estou chorando, como não será na
cama?, me peguei pensando.
— E então, o que foi exatamente que seu namorado disse? —
perguntou Chris, arrancando minha imaginação da zona onde andara
perambulando, em cima daquele móvel onde as pessoas não usam roupas.
— Ex-namorado — apressei-me em dizer. Para não dar margem a
nenhum equívoco.
Ao prestar atenção ao que Chris dissera sobre o formulário,
subitamente relembrei como Luke era carinhoso comigo no passado. Uma onda
insuportável de nostalgia quebrou sobre mim, trazendo consigo uma nova
batelada de lágrimas.
— Só me contaram uma das coisas que Luke disse — solucei. — E era
MENTIRA!
Não era uma mentira propriamente dita, não do ponto de vista técnico.
Mas transmitia uma imagem distorcida de mim, fazendo com que eu não
parecesse uma boa pessoa. Portanto, num certo sentido, era uma mentira. A
qual me pareceu melhor esconder de Chris.
— Isso é terrível — murmurou Chris. — Seu namorado mentir assim
sobre você.
Algo em seu tom de voz me levou a desconfiar de que ele estava
novamente zombando de mim. Mas, quando lhe lancei um olhar penetrante,
encontrei seu rosto franco e tranqüilo. Recomecei a chorar.
— Luke Costello é um perfeito canalha — eu chorava. — Devia estar
fora de mim no dia em que saí com ele pela primeira vez.
Virei-me para pousar a cabeça sobre a mesa. Com o movimento,
minhas coxas cobertas pela saia de laicra roçaram nas calças jeans de Chris.
Ah, não há mal que por bem não venha...
Chris ficou esfregando minhas costas por algum tempo, enquanto eu
permanecia curvada sobre a mesa. Demorei-me nessa posição mais do que o
estrito necessário, porque era muito gostoso sentir sua mão passando pelo fecho
de meu sutiã. Quando finalmente tornei a endireitar as costas, aconteceu outro
roçar de coxas tentador. Que sorte a minha, estar usando uma saia curta.
Do extremo da mesa, várias cabeças olhavam para nós, com interesse.
Se Neil não abrisse o olho, corria o risco de perder sua platéia. Trinquei os
dentes, emitindo poderosos raios mentais para os suéteres marrons. Vão
embora. Se algum de vocês se aproximar agora, eu mato.
Por incrível que pareça, com exceção de Fergus, a vítima do LSD, que
me passou uma caixa de lenços-de-papel, os outros nos deixaram em paz.
Chris continuou a emitir sons calmantes. Sua atenção era como um
banho de Caladryl nas ferroadas da rejeição de Luke, o antídoto para o veneno
de Luke.
— Não entendo que necessidade ele tinha de mentir a meu respeito
para o Dr. Billings — disse a Chris, triste. Quanto mais bancasse a vítima,
melhor. Amarraria Chris a mim com as cordas da solidariedade.
Tinha uma vaga consciência de que perdera a verdadeira dor de vista.
Sim, eu estava arrasada com o que Luke dissera. Não por ter mentido sobre mim
— e sim por ser verdade. Mas não podia contar isso a Chris. A honestidade era
um luxo a que eu não podia me dar.
Em vez disso, comedi minha dor, na esperança de fazer com que Chris
gostasse de mim. A corajosa heroína preserva a sua dignidade, apesar de
perplexa com as mentiras do namorado cruel, esse tipo de coisa.
— O que Luke disse exatamente? — perguntou Chris.
— Sou uma azarada — improvisei, me esquivando da pergunta. Uma
fornada fresca de lágrimas chegou aos olhos. — Parece que só acontecem coisas
ruins comigo. Entende o que quero dizer?
Chris fez que sim, com uma expressão severa que me deixou nervosa.
Será que eu o aborrecera?
No momento em que me convenci de que ele sabia que eu inventara
tudo aquilo sobre as mentiras de Luke, Chris inesperadamente puxou a cadeira
para mais perto de mim. Dei um pulo, devido à brusquidão do gesto e meu
próprio sentimento de culpa. Ele se aproximara tanto de mim que sua coxa
direita se encaixou entre as minhas. Praticamente enfiada debaixo da minha
saia, percebi, alarmada. O que ele estava fazendo?
Acompanhei seus movimentos, assustada, ao que ele levou a mão ao
meu rosto e pousou os dedos sob minha mandíbula. Será que vai me bater? Por
um momento que se prolongou infinitamente, meu rosto descansou na concha
de sua mão. Ou vai me beijar? Quando ele aproximou mais ainda seu rosto,
dando a entender que seria o segundo caso, entrei num pânico louco,
imaginando como poderíamos nos beijar sem que todos os suéteres marrons à
mesa nos vissem. Mas ele nem me bateu, nem me beijou. Em vez disso, passou o
polegar por meu rosto e secou uma das lágrimas. Um gesto que mesclava
eficiência e uma estranha ternura.
— Coitadinha da Rachel — disse ele, secando a outra lágrima com o
outro polegar. A compaixão em sua voz era inequívoca. Ou a paixão...? Talvez...
— Coitadinha da Rachel — repetiu.
Mas, nesse exato instante, Misty 0'Malley passou por nós e, para
minha grande surpresa, ouvi-a rir. Ela não tinha o direito de rir. Todo mundo
tinha a obrigação de sentir pena de mim.
Coitadinha de mim!, dissera Chris.
Ela me encarou, com uma expressão de desprezo abrasador em sua
carinha de olhos verdes. Sentindo-me injustiçada e cheia de ódio, olhei para
Chris, pronta a pautar minha reação pela sua. Quando ele apertou os lábios de
sua linda boca, esperei ansiosamente que dissesse "Cala a boca, Misty, sua
putinha". Mas ele não disse. Não disse absolutamente nada. E, mesmo a
contragosto, eu também não.
Misty se afastou, com seu andar arrogante. Sem me olhar nos olhos,
Chris disse devagar, com ar pensativo:
— Tenho uma sugestão a fazer.
Uma sugestão em que os três ingredientes principais eram ele, nossa
nudez e um preservativo?, me perguntei, cheia de esperança.
— Você pode não gostar — avisou.
Ele não queria usar preservativo? Tudo bem, a gente podia bolar outra
coisa.
—Sei que você está se sentindo péssima, neste momento — disse,
medindo as palavras. — Está magoada. Mas talvez seja bom para você refletir
sobre o que Luke disse, porque pode acabar descobrindo que não é mentira.
Encarei-o, boquiaberta, enquanto uma vozinha choramingava dentro
de mim: Pensei que você fosse meu amigo. Ele também me encarava, com um
olhar da mais profunda simpatia.
O que estava acontecendo?
Nesse justo momento, Misty 0'Malley tornou a entrar no aposento,
dizendo "Preciso de um homem alto e forte". Isso provocou um estouro da
porcada, como se fosse hora do almoço no chiqueiro. Ela ergueu a mão e disse:
"Mas, à falta de um, vou ter que me virar com você." Brindando-me com um
sorriso especial, daqueles todos seus, que ninguém mais podia ver, estendeu o
braço e puxou Chris pela mão.
E ele foi! Levantou-se, roçou meu joelhos, provocando em mim um
breve frisson, e disse: "Mais tarde a gente continua." Ato contínuo, foi embora.
Quase rompi em lágrimas de novo. Senti ódio de Misty 0'Malley, por ter
o dom de me fazer sentir como se fosse o idiota da aldeia. Odiei Chris por
preferir Misty a mim. E, o pior de tudo, estava mortalmente envergonhada pelo
fato de Chris saber que eu estava mentindo em relação a Luke. Agora, o que eu
não entendia mesmo era a razão de ele ter sido tão benevolente em relação à
mentira.
Quando os outros internos vieram falar comigo, compreendi que podia
ser honesta sobre o que Luke escrevera. Não era tão ruim assim, lembrei a mim
mesma.
O primeiro a se aproximar de mim foi Mike que, como Chris, já sabia
que chegara um questionário antes mesmo de eu lhe contar.
— É óbvio. — Ele mostrou os dentes, estufando o peito de pombo. —
Quando você estiver aqui há três semanas, vai conhecer os sinais. Mas, enfim, o
que o rapaz disse?
— Que eu às vezes cheirava cocaína antes de ir para o trabalho. — Ao
repetir em voz alta pela primeira vez o que Luke dissera, o impacto de sua
traição me atingiu com força renovada. Senti-me invadir por um ódio amargo.
— E cheirava? — perguntou Mike.
— De vez em quando — disse, impaciente, aborrecida por ter que
explicar essas coisas para aquele fazendeiro bronco. — Não tem nada de mais —
afirmei, veemente. — Um monte de gente faz isso em Nova York, é diferente
daqui, entende? A vida lá é agitadíssima. É a mesma coisa que tomar uma xícara
de café pela manhã. Você não pode entender.
Pouco a pouco, Neil foi perdendo a guerra da audiência, à medida que
os internos iam se bandeando para o meu lado. Eu aproveitava cada chegada
para externar minhas mágoas mais uma vez.
Queria mãos resserenantes se impondo sobre meus sentimentos febris.
E, como Luke me fizera sentir uma nulidade, queria equilibrar os pratos da
balança, reduzindo-o a nada.
Ao contrário de Celine, os internos não fizeram nenhuma objeção a que
eu estraçalhasse Luke Costello. Até participaram com suas próprias histórias,
"Grandes questionários que conheci". Empanturramo-nos com casos terríveis de
amigos-da-onça e parentes que nos apunhalaram pelas costas em muitos
questionários do Claustro. Eu estava quase me divertindo. Não me importava de
jogar no mesmo time que os outros, porque precisava ter alguém com quem
falar, ainda que fôssemos tão afins quanto pessoas nascidas em planetas
diferentes. Foi bom sentar no meio de uma mesa cheia de gente que era toda
simpatia e barras de chocolate.
Acreditaram de bom grado em cada coisa terrível que lhes contei sobre
Luke. Menos, é claro, naquela parte sobre o violino do cego. Mas deixei isso de
lado, e logo estávamos lavando a roupa suja de Luke outra vez.
— Luke Costello seria incapaz de dizer a verdade sobre o que quer que
fosse! — declarei. — Querem mesmo saber? Ele mentiria até se vocês lhe
perguntassem qual é sua cor favorita.
Quanto mais eu denegria seu nome, melhor me sentia. No fim, já
estava quase acreditando que ele era mesmo um horror, como alegara.
Chris não voltou. Fiquei de olho na porta, imaginando aonde fora com
Misty. E o que os dois estavam fazendo.
Filhos-da-puta.
Mas não cheguei a ter tempo de ficar emburrada, porque Mike e
companhia estavam muito interessados na vida agitadíssima que eu levava em
Nova York.
—E você ficava muito ocupada no trabalho? — Eddie perguntou.
Todos se aproximaram mais de mim, seus olhos acesos de interesse.
— Vocês nem acreditariam — disse-lhes eu. — Não era incomum fazer
uma jornada de trabalho de dezoito horas. E a gente podia perder o emprego
ASSIM. — Estalei os dedos, para demonstrar como era fácil. — E não existe
auxílio-desemprego em Nova York.
Todos soltaram exclamações chocadas.
— A gente podia ir parar debaixo da ponte em questão de dias — disse
eu, sombria. — E faz muito mais frio em Nova York do que aqui.
— Mais frio do que em Leitrim? — perguntou Clarence.
— Muito mais.
— Mais frio do que em Cork? — perguntou Don.
— Muito mais.
— Mais frio do que em Cav... — já ia começando John Joe, mas
interrompi-o, um tanto irritada:
— Mais frio do que em qualquer lugar da Irlanda.
— Deus do Céu, parece um lugar horrível — disse Mike. — Por que
você foi para lá?
— Boa pergunta, Mike — disse eu, com um sorriso de garota triste.
— E esse negócio de cocaína, é igualzinho a café? — perguntou Peter.
— Não faz diferença. Na verdade, acho até que são derivados da mesma
planta.
— E há quanto tempo você estava namorando esse Luke? — perguntou
um outro.
— Uns seis meses.
— E ele te deve dinheiro?
— Aos montes.
— Que coisa mais chocante.
— E ele me fez sentir tão humilhada — funguei, com uma pontada
sincera de dor.
— Ninguém pode nos fazer sentir coisa alguma — interrompeu
Clarence. — Nossos sentimentos são responsabilidade nossa.
Fez-se silêncio. Os outros se voltaram para ele, encarando-o, chocados.
— QUÊ? — indagou Eddie, seu rosto vermelho tão contraído de
irritação e incredulidade, que parecia estar tendo uma crise de prisão de ventre.
— Nossos sentimentos são resp... — repetiu Clarence, como um
papagaio.
— Seu idiota — esbravejou Vincent. — Só disse besteira. Está tentando
arranjar emprego aqui?
— Só estou dizendo! — protestou Clarence. — Foi isso que me
disseram, quando meus irmãos me humilharam. Que ninguém pode fazer com
que nos sintamos de nenhum jeito, a menos que deixemos.
— Estamos tentando animar Rachel! — gritou Don. — A criança está
MAGOADA!
— Também estou tentando animá-la — insistiu Clarence. — Se ela não
consegue se desapegar daquele sujeito Luke...
— AH, CALA A BOCA — disseram várias vozes em coro.
— Quando você estiver aqui há cinco semanas, vai entender o que
quero dizer — sentenciou Clarence, altivo.
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