— Sabe, Luke não é nenhum anjo — eu ia dizendo. — Sempre foi
leviano e desleal. Mau-caráter, para dizer a verdade.
Isso foi no dia da conjunção catastrófica Questionário/Não Tem
Academia. Eu estava no refeitório, horas depois, cercada por internos que
bebiam minhas palavras. Ter uma tábua de carne para fazer picadinho de Luke
me proporcionou uma espécie de prazer amargo, que desfrutei sem dó nem
piedade.
Não me contentei em insinuar que Luke era um ladrão, acusei-o
abertamente, com todas as letras do alfabeto. Que importância isso tinha?
Nenhuma daquelas pessoas iria conhecê-lo, mesmo. Mas é claro que Luke não
roubara o dinheiro do cofrinho da sobrinha de seis anos de idade, o dinheiro que
ela vinha economizando para comprar um filhote de cachorro. Na verdade, Luke
nem tinha sobrinhas. Ou sobrinhos. Mas, e daí?
Fui longe demais, porém, ao dizer que ele roubara o violino de um
cego. Os rapazes me encararam com desconfiança, trocando olhares de soslaio.
— Roubou o violino de um cego? — perguntou Mike. — Tem certeza?
Não foi aquele santo irlandês que fez isso? Como é mesmo o nome dele...?
— Matt Talbot — informou alguém.
— Isso mesmo, Matt Talbot — concordou Mike. — Ele roubou o violino
de um cego para conseguir dinheiro para a bebida, na época em que ainda
enchia a cara.
— Er, tem razão — voltei atrás, apressada. — Eu quis dizer que Luke
roubou do Violino do Cego, o bar na Rua 60 West onde trabalhava.
— Aaaahhh — suspiraram eles. — Do Violino do Cego.
Foi por um triz. Eles se voltaram uns para os outros, sacudindo as
cabeças, mais calmos:
— Do Violino do Cego. Do.
Eu passara a tarde com Celine, na aconchegante sala das enfermeiras.
Mas, apesar do aconchego do cômodo, da presença bondosa e maternal de
Celine e da assombrosa variedade de biscoitos de chocolate, minha agitação
beirava a histeria. Comi o pão que o diabo amassou, imaginando o que mais
Luke pusera no questionário. Ele sabia coisas demais sobre mim.
— Você viu? — perguntei a Celine, com o coração palpitando.
— Não. — Ela sorriu.
Eu não sabia se acreditava nela ou não.
— Se viu, por favor, por favor, me diz o que está escrito — implorei. —
É importante, é minha vida que está em jogo.
— Não vi — disse ela, mansamente.
Ela não entende, pensei, em muda frustração. Ela não faz idéia do
quanto é importante.
— O que as pessoas normalmente dizem nesses questionários? —
perguntei, trêmula. — Em geral são coisas horríveis?
— Às vezes — disse ela. — Quando o cliente fez coisas horríveis.
O desespero e a náusea tomaram conta de mim.
— Anime-se — disse ela. — Não pode ser tão ruim assim. Você
assassinou alguém?
— Não — respondi, rindo.
— Então. — Ela sorriu.
— Quando é que vou ter permissão para vê-lo? — perguntei.
— Essa decisão compete a Josephine. Se ela achar pertinente para a
sua cura, pode lê-lo em voz alta numa sessão de grupo, e...
— Lê-lo em voz alta numa SESSÃO DE GRUPO? — gritei. — Na frente
dos outros?
— Não seria exatamente um grupo se fosse só você, não é? —
argumentou Celine, com um de seus sorrisos afetuosos, embora completamente
imparciais.
O pânico ferveu e transbordou.
Não vou ficar nesse lugar e me sujeitar a um tratamento desses nem
que a vaca tussa!
Então lembrei o que o Dr. Billings dissera sobre os portões trancados.
Era verdade. No dia em que eu chegara, papai tivera que se anunciar pelo
interfone, antes que os abrissem. E as muralhas eram altas. Altas demais para
serem galgadas por uma pata-choca desajeitada como eu.
Como, em nome de Deus, fui acabar nessa situação?, me perguntei.
“Deve ter sido exatamente assim que Brian Keenan e John McCarthy se
sentiram, quando se viram acorrentados a um radiador num porão de concreto
situado numa zona não muito chique de Beirute." (Jornalista britânico e
professor irlandês seqüestrados na década de oitenta pela organização Jihad
Islâmica, tendo permanecido anos em seu poder.)
—Não é tão mau assim — disse Celine, como se realmente acreditasse
nisso. Deu-me um sorriso reconfortante, que não me reconfortou nada.
— Como assim? — quase gritei. — Esta é a pior coisa que já aconteceu
comigo!
— Não é uma sorte, então, que você tenha levado uma vida tão isenta
de atribulações? — perguntou ela.
Não podia fazê-la entender a verdadeira catástrofe que tudo isso era.
Minha pele se arrepiava toda cada vez que eu imaginava o questionário
sendo lido em voz alta para o resto do grupo. Teria dado qualquer coisa para
saber o que Luke escrevera.
Teria?
Será que queria mesmo ouvir Luke me condenando?
Eu estava num mato sem cachorro. Não saber era uma tortura, mas
saber seria uma tortura pior ainda. Sabia que o leria com o rosto quase de perfil,
estremecendo a cada palavra cruel.
Eu teria matado para conseguir um psicotrópico. Qualquer coisa. Não
precisava ser um vidro de Valium. Uma garrafa de conhaque daria conta do
recado.
No auge da agitação, fiz menção de me levantar e ir peitar o Dr.
Billings, exigindo que o lesse para mim.
—Sente-se — ordenou Celine, subitamente muito firme.
— Que-ê?
— Sente-se. Desta vez você não vai conseguir o que quer à força —
disse ela.
Fiquei pasma com a insinuação de que eu já conseguira o que queria à
força em outras ocasiões.
— O hábito da gratificação imediata está arraigado demais em você —
prosseguiu. — Esperar vai lhe fazer bem.
— Quer dizer então que você viu o questionário?
— Não, não vi.
— Então por que está falando de mim e de gratificação imediata?
— Todas as pessoas que vêm para cá passaram a maior parte de sua
vida adulta buscando gratificação imediata — disse ela, retomando seu ar manso
e maternal. — É uma parte fundamental da personalidade do viciado. Você não é
diferente. Embora eu saiba que gostaria de pensar que é.
Filha-da-puta pretensiosa, pensei, num ímpeto de ódio. Vai me pagar
por isso. Antes de eu sair daqui, você vai estar de joelhos me pedindo perdão por
ter sido tão ruim comigo.
— Mas quando você sair daqui, vai estar concordando — ela sorriu.
Fixei os olhos no colo, mal-humorada.
— Tome outra xícara de chá — ela ofereceu. — E coma uns biscoitos.
Aceitei-os, em silêncio. Queria demonstrar o quanto estava indignada
recusando-me a comer, mas um biscoito de chocolate é um biscoito de
chocolate.
— Como está se sentindo agora? — perguntou Celine, depois de algum
tempo.
— Estou com frio.
— É o choque — disse ela.
A resposta me agradou. Indicava que era normal eu me sentir tão mal
como me sentia.
— Estou com sono — disse, pouco depois.
— É o choque — Celine repetiu.
Tornei a assentir, satisfeita. Resposta certa.
—É seu organismo tentando fazer frente a algo desagradável —
prosseguiu ela. — Normalmente, você usaria uma droga para superar a dor.
Desculpe, mas vou ter que descontar alguns pontos por essa.
Mas não reagi, pois imaginei que devia fazer parte de seu trabalho
dizer essas coisas. Durante alguns minutos, comi meus biscoitos e tomei meu
chá, acreditando que atingira um platô de calma. Mas, quando terminei de
comer o último biscoito, a angústia voltou com a mesma intensidade, fazendo
com que meu estômago desse voltas. Eu estava perplexa com a crueldade de
Luke. Ardia como um tapa na pele queimada de sol. Primeiro me dava um fora, e
agora me metia numa puta encrenca. Por quê?
Fui obrigada a reconhecer que não era só isso que tinha que enfrentar.
Voltei a atenção para o primeiro choque que sofrerá, ao descobrir que o Claustro
não era o hotel de luxo apinhado de celebridades que eu tinha esperado. Por um
momento, me esquecera disso, devido ao grande horror provocado pela novela do
questionário de Luke.
Eu estava num centro de reabilitação que não passava de um pardieiro
sujo e caqueirado, cheio de alcoólatras e toxicômanos feios, gordos e broncos.
Não havia mais o esplendor da celebridade, o brilho da academia para me
distrair do que o Claustro realmente era.
Então, meu ódio por Luke voltou. Sentia-me mais furiosa do que
nunca.
— Luke Costello é um filho-da-mãe mentiroso — disparei, colérica,
entre lágrimas.
Celine riu.
De uma maneira amável.
Só para me confundir.
— Qual é a graça? — indaguei.
— Rachel, pela minha experiência, o que as pessoas dizem nesses
questionários é verdade — contou ela. — Trabalho aqui há dezessete anos, e
nem uma única vez alguém mentiu neles,
— Tudo tem sua primeira vez — gracejei.
— Você já pensou no tormento que deve ter sido para Luke escrever o
que escreveu?
—Por quê, um tormento? — perguntei, surpresa.
— Porque, se ele sabe o bastante a seu respeito para poder comentar
seu vício, é porque a conhece o bastante para gostar de você. Ele devia saber que
suas revelações a magoariam. Ninguém se sente à vontade fazendo isso com a
pessoa amada.
— Você não conhece Luke. — Eu começava a fumegar. — Ele não é flor
que se cheire. Não é só pelo questionário. Sempre foi um mentiroso.
Sempre?, uma parte de mim perguntou, surpresa. Quem se importa?,
respondeu outra parte de minha cabeça. Agora ele é, o.k.?
— Você não escolheu bem seu namorado — disse Celine, com um de
seus sorrisos que evocavam uma atmosfera de rechonchudez, donas-de-casa e
pão caseiro.
Fiquei desconcertada. Por um momento, não soube o que dizer. Então,
resolvi me unir a ela. Na dúvida, lisonjeie.
— Sei que não — disse, com toda a honestidade. — Você tem toda
razão, Celine, só agora me dou conta disso.
— Ou talvez ele não seja mesmo uma má pessoa — disse ela, mansa. —
Talvez você apenas queira se convencer de que é, para desacreditar qualquer
informação que ele forneça sobre seu vício.
O que a levava a pensar que entendia tanto assim do assunto?, me
perguntei. Era apenas uma porcaria de enfermeira, que só servia para enfiar
termômetro no rabo dos outros!
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