— Lamento, mas você não pode ir embora — disse o Dr. Billings.
— Quem disse? — perguntei, fazendo um beicinho petulante.
— Você mesma — declarou ele, tranqüilo, brandindo uma folha de
papel. — Você assinou um contrato legal e irrescindível em que se compromete a
ficar aqui durante três semanas.
— Então me processe — tornei, arrogante. Não vivera em Nova York à
toa.
— Vou conseguir na Justiça que impetrem um mandado forçando-a a
ficar aqui até que transcorram as três semanas — retorquiu ele.
— E vou processá-la, até arrancar de você cada centavo que não tem.
Apanhou outro papel e o brandiu.
— Seu extrato bancário. Você deixou suas finanças se enrolarem um
pouquinho, não?
— Como foi que o senhor conseguiu isso?
— Você mesma me autorizou a consegui-lo — disse ele. — No mesmo
documento em que se comprometia a ficar durante três semanas. Fui bem claro?
Vou ficar muito feliz de conseguir um mandado para impedi-la de ir embora.
— O senhor não pode fazer isso. — Eu me sentia cheia de ódio
impotente.
— Posso e vou. Estaria faltando com meu dever, se não o fizesse.
— Vou fugir, vou escapar — disse eu, fora de mim. — Não há nada que
me impeça de sair tranqüilamente pelo portão neste exato instante.
— Acho que você ainda vai descobrir que há muitas coisas para
impedi-la, além das muralhas e do portão trancado.
— Olhe aqui, seu filho-da-mãe com complexo de poder... seu porco —
implorei, oscilando entre o ódio e o desespero — ...não tem nada de errado
comigo! Só vim para cá por causa da sauna e das massagens, não deveria estar
aqui de jeito nenhum.
— É o que todos eles dizem.
Que sujeito mais mentiroso! Que cara-de-pau, esperar que eu
acreditasse que nem um único dos internos admitia ser alcoólatra. Estava na
cara, literalmente, como suas microvarizes e seus narigões vermelhos. Mas algo
me dizia que se eu não me acalmasse e argumentasse racionalmente com ele,
não chegaria a parte alguma.
— Por favor, me escute — pedi, num tom de voz bem menos histérico.
— Não há a menor necessidade de discutirmos por causa disso. Mas o fato é que
só concordei em vir para cá porque pensei que se tratasse de um spa.
Ele assentiu. Sentindo-me encorajada, prossegui:
— E o Claustro está longe de ser um spa. Quando assinei o contrato
me comprometendo a passar três semanas aqui, assinei-o totalmente iludida,
entende? Agora compreendo que deveria ter dito ao senhor que não sou uma
toxicômana — disse, suplicante. — E foi errado da minha parte me internar
apenas por causa da academia e dos tratamentos estéticos, mas errar é humano.
Fez-se um silêncio. Eu o encarava, cheia de esperança.
— Rachel — disse ele, por fim —, ao contrário do que você pensa,
minha opinião e a opinião de outras pessoas é a de que você, de fato, é uma
toxicômana.
De repente, relembrei o caso dos Birmingham Six. O Processo, de
Kafka. (The Birmingham Six: Grupo de irlandeses condenados injustamente pela
explosão de dois pubs na cidade de Birmingham, na Inglaterra, que matou vinte
e uma pessoas e feriu mais de cento e sessenta, em 1974. O Processo: Romance
capital de Franz Kafka (1883-1924), que narra a história de Joseph K., um
homem que jamais chega a descobrir por que está sendo processado).
Minha vida começava a se parecer com um pesadelo. Eu estava sendo
condenada sem um julgamento decente por um crime que não cometera.
— Quem são essas outras pessoas? — perguntei.
O Dr. Billings brandiu uma terceira folha de papel.
— Este fax chegou de Nova York há meia hora. É de... — deteve-se,
olhando para a folha — ...um senhor chamado Luke Costello. Creio que você o
conhece, não?
Meu primeiro sentimento foi de encanto. Luke havia me passado um
fax! Estava em contato, o que devia significar que ainda me amava, que não
mudara de idéia.
— Posso ver? — Estendi a mão, os olhos brilhando.
— Ainda não.
— Mas é para mim. Me dá minha carta.
— Não é para você — esclareceu o Dr. Billings. — É para Josephine,
sua terapeuta.
— Do que é que você tá falando, porra? — disparei. — Por que Luke
escreveria para Josephine?
— São as respostas do Sr. Costello ao questionário que lhe enviamos
por fax na sexta-feira.
— Que tipo de questionário? — Meu coração martelava no peito.
— Um questionário sobre você e sua dependência.
— Minha dependência! — rebati, furiosa e abalada. — E a porra da
dependência dele? Vocês perguntaram a ele sobre isso? E aí, perguntaram?
— Por favor, sente-se, Rachel — disse o Dr. Billings, sem alterar a voz.
— Ele se droga até dizer chega! — gritei, embora não fosse verdade.
— A questão, Rachel — não, por favor, sente-se —, a questão, Rachel, é
que não é o Sr. Costello quem se encontra internado por dependência química
num centro de reabilitação. — Fez uma pausa. — E sim você.
— Mas eu não deveria ESTAR AQUI, PORRA! — Entrei em desespero. —
Foi um EQUÍVOCO, PORRA!
— Não há dúvida de que foi tudo, menos um equívoco — disse Billings.
— Você ainda não parou para pensar no fato de que quase morreu quando
tomou aquela overdose?
— Que quase morri, o quê — debochei.
— Quase morreu, sim.
—-Será?
— Não. É. Normal. — Ele escandiu as palavras. — Ir parar num
hospital e ter que ser submetida a uma lavagem estomacal por ingerir uma
quantidade de drogas que põe sua vida em risco.
— Foi um acidente — tornei, mal conseguindo acreditar na burrice
daquele homem.
—O que isso diz sobre a vida de uma pessoa? — perguntou ele. — O
que diz sobre seu amor-próprio, quando ela se encontra numa situação dessas?
Porque foi o que você fez, Rachel. Foi você quem pôs aquelas pílulas na boca,
sem que ninguém a obrigasse.
Suspirei. Era inútil tentar discutir com ele.
— E estas respostas do Sr. Costello confirmam o que já sabíamos: que
você tem um problema crônico com drogas.
— Ora, por favor. — Joguei a cabeça para trás. — Acorda, pelo amor de
Deus.
— De acordo com ele, você sempre cheirava cocaína antes de ir para o
trabalho, não é verdade?
Encolhi-me de vergonha, sentindo um ódio brutal de Luke. Filho-daputa!
Como podia me trair daquele jeito? Como podia me magoar tanto assim?
Ele me amava, como nosso relacionamento pudera dar tão errado? Meu nariz
começou a tremer, quando as lágrimas assomaram aos olhos.
— Não vou responder à sua pergunta — consegui dizer. — O senhor
não sabe nada sobre minha vida, sobre o quanto meu trabalho era difícil.
— Rachel — disse ele, brando —, ninguém tem que usar drogas.
Nenhum emprego é tão ruim assim.
Eu devia estar enchendo a mesa de socos e me defendendo, mas não
me sentia capaz. Estava arrasada demais com a traição de Luke. Mais tarde,
quando o ódio voltasse, eu juraria de pés juntos me vingar dele. Colocaria sua
edição limitada do Houses of the Holy do Led Zeppelin no microondas, onde se
retorceria num amassado imprestável, digno de Salvador Dali. Rasgaria o
guardanapo que Dave Gilmour do Pink Floyd autografara para ele certa vez.
Atiraria suas botas de motoqueiro no rio Hudson. Com ele dentro.
Mas, por ora, sentia-me um farrapo humano.
Num lance do tipo tira bom/tira mau, Billings mandou buscar Celine,
a enfermeira. Ela me levou para a sala das enfermeiras e preparou uma xícara
de chá de erva-doce para mim, que, não só não atirei na sua cara, como tomei, e
que, para minha surpresa, me reconfortou.
(Tira bom/Tira mau: Técnica policial que consiste em alternar dois
policiais na condução de um interrogatório, um agressivo e outro benevolente,
para que o medo provocado pelo primeiro leve o suspeito a se abrir com o
segundo.)
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