Eu havia me prometido que segunda-feira começaria a me organizar e
exercitar. Assim que começasse a me esforçar para ficar linda e magra, me
sentiria mais otimista em relação às minhas chances de reconquistar Luke.
Resolvi pedir a Chris para me mostrar a academia. Algumas mulheres,
quando estão com dor-de-cotovelo, não sentem uma gota de interesse por outros
homens. Eu não era uma delas. Pelo contrário, ansiava pela aprovação
masculina como uma forma de cura. Não ligo que me chamem de frívola, não
ligo que me chamem de carente, não ligo que me chamem do que for, contanto
que me liguem.
Excepcionalmente, Chris não se envolvera em nenhuma conversa
interminável depois do almoço com algum dos suéteres marrons. Estava lendo, o
pé pousado no joelho oposto, com um ar propositalmente sexy, só para me
afugentar.
Seu par de botas era impressionante — pretas, em lezard, com cano
curto, bico quadrado e elástico lateral, botas que lhe teriam aberto as portas do
sucesso em Nova York. Se por um lado eu me sentia eletrizada por estar perto de
um homem tão bem-vestido, por outro a excitação era uma faca de dois gumes,
pois me afugentava. Suas botas me inspiravam tal reverência e admiração, que
eu tinha medo de não ser digna de dirigir a palavra ao seu dono.
E medo de que os outros internos deduzissem que eu me sentia atraída
por Chris. Felizmente, estavam concentrados em Neil, que fazia as honras
palacianas para o círculo de puxa-sacos solidários que se reunia ao seu redor,
balançando as cabeças como vaquinhas de presépio. Nem assim consegui
descolar a bunda da cadeira para me dirigir a Chris.
Levanta daí, me incentivei, bastam quatro passos para cruzar o
aposento e falar com ele.
Tem toda razão, retruquei, com convicção. Mas continuei colada à
cadeira.
Vou contar até cinco, barganhei. Aí, eu vou.
Contei até cinco.
Dez! Mudei de idéia. Vou contar até dez, e aí falo com ele.
Assim que minha bunda se afastou da cadeira para encetar a odisséica
travessia do refeitório, fui paralisada pelo medo. Minha maquiagem! Eu não dava
uma espiada no espelho desde a manhã. Corri feito um raio até meu quarto,
escovei o cabelo e retoquei a maquiagem numa pressa louca, derrapando no
batom e borrando o rímel.
Se ele ainda estiver lá quando eu voltar, juro por Deus que vou falar
com ele, prometi a mim mesma.
Quando voltei, ele estava exatamente no mesmo lugar, ainda livre do
assédio dos homens de meia-idade. Eu não tinha mais desculpas.
Finge que ele é medonho, me aconselhei. Tenta imaginar que ele é
banguela e caolho.
Assim, ligeiramente trêmula, cruzei o assoalho em sua direção.
— Er, Chris — chamei. Surpreendeu-me a entonação normal com que
pronunciei as palavras, em vez do tom de gasguita de um adolescente mudando
a voz.
— Rachel. — Ele abaixou o livro e olhou para mim, com seus olhos
azuis que sempre brilhavam como se o sol estivesse forte demais. Os cantos de
sua linda boca curvaram-se para cima, num meio sorriso. — Como é que vai?
Senta aí.
Eu estava tão eletrizada por ele não ter batido com o livro na mesa e
berrado "Que que é?!", que abri um sorriso de encanto, — Quer me mostrar uma
coisa? — pedi.
— Oba. — Ele deu uma risada curta. — Estou com sorte.
Nervosa e corada, como não me ocorresse nenhum comentário
espirituoso, limitei-me a dizer:
— Er, não... Quer dizer, eu não quis dizer... quer me mostrar a sauna?
— Achei mais seguro pedir para ver a sauna, porque essa eu sabia que de fato
existia.
— É claro — ele respondeu. — Quer pegar suas coisas?
— Ainda não, só quero vê-la, por enquanto.
— Está certo — disse ele, pondo seu livro sobre a mesa. — Lá vamos
nós!
— Cuidado com as lindas botas, Chris — disse Mike, fazendo uma voz
afetada. — Não vá sujar elas de lama.
— Camponeses — comentei, com um muxoxo, revirando os olhos para
cima. Chris limitou-se a rir.
— John Joe quis saber onde as comprei — contou ele, sorrindo. —
Acha que são boas para ordenhar vacas.
E saímos para o frio reinante. O vendaval fazia as árvores ramalharem
os galhos e as mechas de cabelo fustigarem meu rosto. Derrapando por uma
trilha de relva enlameada, de seus cinqüenta metros, passou-me pela cabeça a
idéia de fingir um escorregão, para que, quando Chris me acudisse, eu o
puxasse para o chão, para cima de mim... Antes que tivesse uma chance,
chegamos ao pequeno anexo.
Entrei de supetão, e Chris logo depois de mim. Bateu a porta atrás de
nós, para impedir que a chuva e o vento entrassem.
Estávamos num cubículo ínfimo, cujo interior era agradável e
quentinho. Havia uma máquina de lavar e uma centrifugadora, ambas
sacolejando no cumprimento de seu dever. O barulho era alto, pois ecoava pelo
chão e as paredes de pedra. Olhei para Chris, em expectativa, esperando que ele
me levasse mais adiante.
— Estou pronta, e você? — Sorri, mas com uma pontinha de
ansiedade, pois não parecia haver nenhuma outra porta além daquela por onde
havíamos entrado.
— Você não devia dizer esse tipo de coisa para um homem nas minhas
condições. — Ele sorriu.
Tentei sorrir, mas não consegui. Ele pousou as mãos geladas na tampa
trepidante da máquina de lavar, e em seguida passou-as pelos cabelos claros.
— Ufa — fez ele. — Dá para entender por que chamam este lugar de
sauna.
— Esta é a sauna? — perguntei, com a voz trêmula.
— É.
Olhei em volta. Mas onde estavam as paredes e bancos de pinho sueco,
as toalhas grandes e felpudas, os poros se abrindo e desintoxicando? Havia
apenas um quartinho com tijolos de cimento expostos, chão de concreto e cestos
de roupas em plástico vermelho.
— Não se parece muito com uma sauna — arrisquei.
— A sauna é só um apelido — disse Chris, olhando para mim. —
Porque fica um forno aqui dentro quando lavamos e secamos as roupas,
entende?
— Mas tem uma sauna de verdade? — perguntei, prendendo o fôlego.
Houve uma pausa que pareceu interminável, antes que a resposta
viesse.
— Não.
Meu mundo caiu, Mas foi menos o ultraje que se abateu sobre mim do
que um misto de apatia e desespero. Eu sabia. Em algum canto de meu
inconsciente, já sabia. Não havia nenhuma sauna. Talvez nem mesmo uma
academia. Ou sessões de massagem.
Ao me dar conta disso, o pânico se apoderou de mim.
— Será que podemos voltar para o refeitório? — pedi, com a voz
trêmula e esganiçada. — Posso te fazer algumas perguntas sobre nossa
programação?
— Claro.
Agarrei seu suéter e desabalei numa corrida, arrastando-o pelo
vendaval. Dessa vez, sem nenhuma fantasia sobre escorregões. Alcancei a
parede onde se encontrava a programação quase antes de Chris chegar a sair do
anexo.
— O.k. — Recobrei meu fôlego, com o estômago dando voltas.
— Está vendo tudo isso aqui, terapia de grupo, mais terapia de grupo,
encontros dos AA e mais terapia de grupo... Bom, tem mais alguma coisa que
não esteja na lista?
Tinha consciência de que os outros internos, reunidos em volta de Neil,
haviam levantado o rosto e me observavam, interessados.
— De que tipo?
Eu não queria perguntar com todas as letras se havia uma academia,
para o caso de não haver. Assim, resolvi fazer a pergunta de modo indireto:
— Alguém aqui faz exercícios?
— Bom, eu faço algumas flexões, de vez em quando. Mas não posso
responder por eles.
—Diria que não fazem — acrescentou, inconvicto.
— Onde? — indaguei, ofegante. — Onde você faz suas flexões?
— No chão do quarto.
Meu mundo afundou mais meio metro, mas eu ainda tinha um último
fiapo de esperança. Podiam não ter uma academia, mas talvez oferecessem
outros tipos de tratamento. Sentindo que Chris estava cheio de compaixão e
desejo de agradar, embora confuso com meu comportamento, decidi correr o
risco.
— Será que vocês têm...? — forcei-me a perguntar. Vai em frente, vai
em frente! — ...camas de bronzeamento artificial?
Primeiro, Chris fez cara de riso. Então, sua fisionomia se revestiu de
maturidade e enorme compaixão. Ele meneou a cabeça negativamente, com
brandura:
— Não, Rachel, não temos camas de bronzeamento artificial.
— Nem sessões de massagem? — a custo sussurrei.
— Nem sessões de massagem — concordou Chris.
Não me dei ao trabalho de mencionar item por item da longa lista que
tinha em mente. Se não havia sessões de massagem, o que seria o básico do
básico, tinha certeza de que também não havia sessões de talassoterapia,
banhos de lama ou tratamentos exóticos à base de algas.
— Nem... nem piscina? — forcei-me a perguntar.
Sua boca curvou-se um pouco, mas ele se limitou a responder:
— Nem piscina.
— Então, o que a gente tem para fazer? — finalmente consegui
perguntar.
— Está tudo aqui na lista — disse Chris, tornando a chamar minha
atenção para o quadro de avisos.
Dei mais uma olhada. O monte de sessões de terapia em grupo
continuava lá, com um ou outro encontro ocasional dos AA de permeio, para
quebrar a monotonia. Ao observar a programação, percebi que o refeitório
constava como Salão de Jantar. Salão de Jantar, o cacete! Está mais para
barraco de jantar, pensei com meus botões.
Não, que tal tugúrio de jantar?
Não, espera aí, cortiço de jantar.
Não, melhor ainda, pardieiro de jantar, pensei, com histeria crescente.
Eu ainda tinha mais uma pergunta.
— Er, Chris, você conhece todas as pessoas que estão aqui no
Claustro?
— Conheço.
— Bom, são só vocês? Não tem nenhuma outra ala em alguma parte do
terreno?
Ele pareceu estupefato com a pergunta.
— Não — respondeu. — É claro que não.
Já entendi, pensei. Também não tem nenhum artista. Puta que o
pariu. Prá mim, chega. Prá mim, já chega mesmo.
— Vamos, Rachel, temos terapia de grupo, agora — disse ele, amável.
Ignorei-o e dei meia-volta.
— Aonde você vai? — chamou ele, às minhas costas.
— Para casa — respondi.
Foi o pior dia da minha vida.
Decidi ir embora imediatamente. Iria para Dublin, me encheria de
drogas até o rabo, tomaria o primeiro avião de volta para Nova York e me
reencontraria com Luke.
Não ficaria naquele hospício caqueirado e decadente nem mais um
minuto. Não queria ter mais nada a ver com o lugar e seus internos. Conseguira
tolerá-los mal e porcamente porque faziam parte de um pacote de luxo. Mas não
havia nenhum pacote de luxo.
Sentia-me constrangida, humilhada, idiota, contaminada pela
companhia daquela gente e desesperada para ir embora. Doida para tomar o
máximo de distância possível daqueles alcoólatras e toxicômanos.
Recuava do Claustro como uma pessoa que se queima, como se
estivesse fazendo bilu-bilu e festinhas num bebê fofinho, apenas para descobrir,
horrorizada, que era uma ratazana.
Marchei para o consultório do Dr. Billings, a fim de avisá-lo que estava
indo embora. Porém, quando alcancei a porta que dava para a área onde ficava
seu escritório, descobri que estava trancada. Trancada!
O medo despertou em minhas veias. Eu estava encarcerada naquele
lugar medonho. Ficaria ali por toda a eternidade, tomando chá.
Sacudi a maçaneta, como os personagens fazem naqueles filmes B em
preto-e-branco. Dali a pouco estaria batendo no gancho do telefone e gritando:
"Telefonista, telefonista!"
— Posso ajudá-la, Rachel? — perguntou uma voz.
Era a Chucrute Azedo.
— Quero falar com o Dr. Billings, mas a porta está TRANCADA — disse
eu, com os olhos esgazeados.
— Focê está firrando o maçaneta parra o lado errado — ela observou,
friamente.
— Oh, ah, certo, obrigada — tornei, agradecida, entrando aos tropeções
na Recepção.
Ignorei Cheia de Vida, a recepcionista, e suas desesperadas tentativas
de me avisar que eu não poderia falar com o Dr. Billings sem hora marcada.
— Me observe — dei um sorriso irônico, entrando e dando de cara com
ele.
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