Era segunda-feira de manhã.
Eu tivera uma noite de sono horrível, sonhando o tempo todo com
Luke e acordando desolada, coberta de suor. Estava quase na hora de irmos
para a sessão de terapia em grupo. Constava que o OIE de Neil, o que quer que
isso fosse, estaria presente.
— Quer dizer "Outro Importante Envolvido" — explicou Mike. —
Alguém como a esposa, os amigos ou os pais. Eles comparecem e contam ao
grupo como a gente era horrível quando bebia, cheirava ou esvaziava a geladeira.
— É mesmo? — Senti um frêmito de expectativa voyeurística. Uma
Oprah irlandesa da vida real. Devia tentar convencer mamãe e Helen a assistir a
uma sessão, elas gostariam.
— E quem são seus OIEs? — perguntou Mike, irônico.
— Não tenho nenhum — respondi, surpresa.
— Ninguém jamais viu você sob o efeito das drogas? — perguntou. Seu
tom de voz era sarcástico.
Estava quase perdendo as esperanças. Como podia fazer esses idiotas
entenderem que era normal usar drogas para fins recreativos? Que se qualquer
um dos meus OIEs comparecesse a uma sessão de terapia em grupo, não teria
outra coisa a relatar, a não ser que eu me divertia?
— Vivi em outro país durante os últimos oito anos — disse eu. — E não
acho lá muito provável que a amiga com quem eu dividia o apartamento vá
embarcar no primeiro vôo de Nova York.
Mike riu outra vez, com um olhar malicioso.
— O OIE de Neil é sua esposa — disse. — Em geral, os OIEs são as
esposas.
— Bom, não sei o que a esposa de Neil vem fazer aqui — tornei eu. —
Ele não é alcoólatra.
— É mesmo? — disse Mike, e percebi que zombava de mim. — Como é
que você sabe?
— Porque ele me disse.
— Disse, é?
Neil e sua mulher já estavam no Aposento do Abade, assim como os
outros — Misty, John Joe, Vincent, Chaquie e Clarence.
Neil tinha a aparência angelical e asseada de um menininho que
acabou de ser crismado. Sorri para ele, para transmitir-lhe força, embora ele não
precisasse. Ele me retribuiu com uma espécie de sorriso triste de palhaço, com
os cantos da boca caídos. Eu sabia que seria uma sessão extremamente tediosa,
e estava um pouco decepcionada. Andava ansiosíssima para descobrir se John
Joe transara com uma ovelha.
A mulher de Neil, Emer, parecia ainda mais apagada e feia do que na
véspera. Meu desprezo por ela foi automático, por ter causado todo aquele banzé
em torno do alcoolismo de Neil, ou suposto alcoolismo. Eu não suportava gente
desmancha-prazeres. Era capaz de apostar que ela também fazia parte da Liga
da Direita Católica das Mães Contra o Prazer, exatamente como Chaquie. Tinha
muita sorte por Neil ainda não tê-la mandado à merda.
Josephine chegou e fez com que todos nos apresentássemos. Em
seguida, agradeceu a Emer por sua presença e pôs-se a interrogá-la.
— Não gostaria de contar ao grupo sobre o alcoolismo de Neil?
Suspirei. Quatro cervejas nas noites de sábado não dariam um grande
livro. Josephine olhou para mim. Tremi nas bases.
— Bem — disse Emer, com a voz trêmula —, ele não ficava tão mal
assim, acho eu. — Tinha os olhos postos na saia enquanto falava.
Ele não ficava nem um pouco mal, sua cretina, pensei, lançando-lhe
um olhar venenoso.
— Ele se embriagava com freqüência? — perguntou Josephine.
— Não — disse ela, a voz vacilante. — Quase nunca. Relanceou Neil e
voltou a fitar a própria saia.
Meu desprezo por ela aumentou.
—Ele alguma vez se portou mal com você e as crianças?
— Não, nunca.
— Alguma vez passou dias sem aparecer em casa?
— Não.
—Alguma vez deixou que lhe faltasse dinheiro?
— Não.
— Alguma vez a agrediu verbalmente?
— Não.
— Alguma vez bateu em você?
— Não.
— Alguma vez lhe foi infiel?
— Não.
Comecei a suspirar para tornar patente o tédio que me inspiravam as
palavras de Emer, mas lembrei-me de Josephine e achei melhor ficar quieta.
Josephine tornou a falar:
— Ele deve ter se portado mal alguma vez, ou não estaria aqui. Emer
encolheu os ombros ossudos, sem erguer os olhos.
— Você tem medo do seu marido?
— Não.
— Vou ler uma coisa para o grupo — disse Josephine. — O
questionário que você preencheu quando Neil veio para cá.
— Não! — exclamou Emer.
— Por que não? — perguntou Josephine, com brandura.
— Porque... porque não é verdade!
— Então não é verdade que Neil... — Josephine apanhou uma folha de
papel — ...que Neil quebrou seu nariz em três ocasiões, quebrou sua mandíbula,
fraturou seu braço, queimou-a com cigarros, prendeu seus dedos entre as
dobradiças de uma porta e a bateu, atirou sua filha caçula pela escada abaixo,
fazendo com que atravessasse o painel de vidro da porta da frente e tivesse que
levar quarenta e oito pontos...
— NÃO! — ela gritou, as mãos cobrindo os olhos.
Eu não podia acreditar no que estava ouvindo. Mentir sobre o quanto
ele bebia era uma coisa, mas eu estava abalada com os horrores de que ela o
acusara.
Neil olhou com ódio para Emer, que soluçava.
Todo mundo parecia estar tão chocado quanto eu.
Remexi-me em minha poltrona, agitada, não apenas porque calhara de
me sentar em uma das indigitadas, como, porque o jogo psicoterapeutico já não
me agradava tanto. No começo, até que fora divertido, mas agora se tornara sério
e assustador.
— O que você tem a dizer sobre isso, Neil? — perguntou Josephine, em
voz baixa.
Suspirei de alívio. Até que enfim Neil teria uma chance de se defender!
— Que ela é uma filha-da-puta mentirosa — disse ele, lentamente, com
a voz embargada. Já não parecia ser a boa pessoa de antes, pela maneira como
falara.
— Você é? — perguntou Josephine a Emer, com naturalidade.
Seguiu-se outro silêncio, que se prolongou infinitamente. Eu podia
ouvir meu próprio fôlego entrecortado.
— Você é? — Josephine tornou a perguntar.
— Sou — disse Emer. Sua voz tremia tanto que ela mal conseguia falar.
— Nada disso que escrevi é verdade.
— Ainda tentando protegê-lo? — perguntou Josephine. — Quer dizer
que ele vem antes de você?
Como eu gostaria que Josephine calasse a boca! Emer já havia dito que
nada daquilo era verdade, e eu queria que a coisa morresse aí.
Estava aflita para que a sessão terminasse e pudéssemos fazer alguma
coisa normal e agradável, como tomar uma xícara de chá.
— Antes de seus filhos? — prosseguiu Josephine, mansa. Emer
dobrava-se em duas na poltrona.
Outro silêncio longo, insuportável. Eu estava tão tensa que meus
ombros quase me chegavam às orelhas.
— Não — veio a resposta abafada.
Senti uma enorme decepção.
— Que foi que disse, Emer? — perguntou Josephine, em tom
carinhoso.
Emer levantou os olhos. Seu rosto estava vermelho e molhado.
— Não — repetiu, às lágrimas. — Antes de meus filhos, não. Ele pode
me bater, se quiser, mas quero que deixe meus filhos fora disso.
Olhei para Neil, cujo rosto estava rubro de ódio. O homem simpático e
expansivo de vinte minutos atrás estava irreconhecível agora.
—Quer dizer então que é verdade, não é? — perguntou Josephine,
cheia de compaixão. — Neil fez todas as coisas que você relatou no questionário?
— Fez. — A palavra lhe saiu como um uivo.
— Concordo plenamente — disse Josephine. — E tenho relatórios
policiais e boletins hospitalares que confirmam a veracidade de suas denúncias.
Quem sabe você não gostaria de dar uma olhada neles, Neil? — sugeriu,
simpática. — Quem sabe não gostaria de refrescar a memória sobre o que fez
com sua mulher e seus filhos?
Minha cabeça voltou-se de Emer para Neil, enquanto eu tentava
descobrir quem estava dizendo a verdade. Já não tinha mais tanta certeza de
que fosse Neil. Se Josephine dissera que tinha relatórios policiais, então
provavelmente era verdade.
Neil estava de pé, trocando as pernas como se tivesse sido acometido
pelo mal da vaca louca.
— Olha só para ela — berrou. — Você bateria na sua mulher também,
se fosse casada com uma filha-da-puta burra dessas.
— Sente-se, Neil. — A voz de Josephine era fria como uma lâmina de
aço. — E como se atreve a usar esse linguajar na minha presença?
Ele hesitou. Por fim, sentou-se de má vontade na poltrona. Josephine
voltou-se para ele.
— Por que bateu na sua mulher, Neil?
— Não tive culpa — berrou. — Eu estava bêbado.
Em seguida, ficou perplexo com o que acabara de dizer, como se não
tivesse tido a intenção.
— Quando você se internou aqui — Josephine remexeu em outro papel
—, disse ao Dr. Billings que tomava uma média de quatro cervejas por semana...
Todos levamos um susto, quando Emer deixou escapar um som
estranho. Era um riso chocado.
— Hoje ficou claro que você bebia muito mais do que isso. Fale ao
grupo a respeito, por favor.
— Era só o que eu bebia — afirmou Neil, com ar arrogante. — Quatro
cervejas.
Josephine encarou-o fixamente, com um olhar do tipo "Não brinque
com fogo".
— Talvez um pouco mais — ele se apressou em murmurar. Josephine
não deu uma palavra, limitando-se a olhá-lo do mesmo jeito.
— Está bem, está bem — desistiu Neil. A duras penas, contou-nos que
bebia quatro cervejas por noite, e então, acuado pelo sorriso irônico de
Josephine, disse que era uma garrafa de vodca por semana, para finalmente
admitir que era meia garrafa de vodca por dia.
— Uma garrafa inteira — interrompeu-o Emer, bem mais corajosa
agora. — Uma garrafa de um litro. Além de vinho, cerveja e cocaína, sempre que
arranjava.
Cocaína, pensei, chocada. Neil? Quem olhasse para ele pensaria que
nem sabia o que era cocaína. Eu precisava lhe perguntar onde se podia comprála
em Dublin.
— O.k., Neil — disse Josephine, com a paciência de uma mulher que já
fizera esse tipo de coisa muitas vezes antes —, vamos começar de novo. Conte ao
grupo o quanto você realmente bebia.
Relutante, Neil reiterou o que Emer acabara de dizer.
— Obrigada, Neil — disse Josephine. — Agora, poderia fazer o favor de
contar ao grupo o quanto você realmente bebe?
— Mas eu acabei de...
— Não mesmo. — Josephine sorriu. — Você apenas nos contou o que
Emer sabe. E as garrafas que guarda no carro, os drinques que toma no
escritório?
Neil a encarou com um olhar do tipo "Que mais você quer, meu
sangue?".
Seus olhos estavam fundos, e ele parecia exausto.
— Porque seu sócio virá na sexta-feira, e nos contará — disse
Josephine, amável. — E — acrescentou — sua namorada virá na quarta.
Pouco depois de encerrada a sessão, Josephine disse a Neil "Fique com
esses sentimentos", o que quer que isso quisesse dizer. Em seguida, uma das
enfermeiras levou Emer embora dali. Os internos e eu permanecemos no
Aposento do Abade, trocando olhares constrangidos. Chaquie e Clarence
desapareceram, murmurando algo sobre pôr a mesa.
Neil continuou sentado, a cabeça encostada no braço da poltrona.
Ergueu o rosto e olhou direto para mim, com uma expressão suplicante. Lanceilhe
um olhar de desprezo e nojo, antes de dar-lhe as costas.
— Você está bem, Neil? — ouvi Vincent perguntar, o que me deixou
atônita.
Foda-se, Neil, pensei, com ódio. Foda-se, Neil, seu beberrão,
espancador de mulheres, mentiroso. Relembrei como ele tentara me convencer
de que sua mulher era louca, Josephine uma máquina de lavar cérebros e ele
um bom rapaz.
Neil respondeu à pergunta de Vincent com um chilique, e dos bons.
Desferindo socos no braço da poltrona, abriu um berreiro. Mas eram lágrimas de
ódio, não de vergonha.
— Não acredito no que a filha-da-puta da minha mulher acabou de
fazer! Me recuso a acreditar! — gritava, as lágrimas a escorrerem-lhe pelo rosto
contraído. — Por que ela tinha que dizer aquelas coisas, porra? Por quê? Ó meu
Deus, POR QUÊ?
— Vem tomar uma xícara de chá — sugeriu Mike, em tom amável.
— Ela está inventando, sabe, aquela vaca filha-da-puta — insistia Neil.
— E eu vendo ela sentada ali — fez gestos veementes a indicar a poltrona que
Emer acabara de desocupar —, com ar de santinha. Pois bem, me acreditem, há
quatorze anos que aquela mulher faz da minha vida um inferno. Mas é tudo eu,
Neil fez isso, Neil fez aquilo...
E seu discurso foi-se tornando cada vez mais incoerente. Levantei os
olhos para o Céu, enquanto Mike, Vincent e Misty — acredite quem quiser —
rodeavam-no, tentando consolá-lo. Até mesmo John Joe mantinha-se ali,
desajeitado, como que na intenção de dizer alguma coisa reconfortante, se
soubesse que palavras usar.
— O que aconteceu com minha vida? — indagava Neil. — Por que deu
tudo tão errado? E como é que ela ficou sabendo de Mandy? Dá para acreditar
que teve a cara-de-pau de se encontrar com ela? Aposto que conversaram sobre
mim, as duas filhas-da-puta.
— Vamos para o refeitório — Mike tornou a sugerir. Eu não
compreendia por que todos estavam sendo tão bons com Neil.
— Não posso — murmurou ele. — Não tenho coragem de olhar na cara
de ninguém.
— Tem, sim — encorajou-o Mike. — Você está entre amigos.
— Claro, isso já aconteceu com todos nós — disse Vincent, num tom de
voz insolitamente manso. — E nós também odiamos.
— É isso aí. — Misty deu um risinho meigo para Neil. — É o normal,
para os parâmetros dessa merda em que estamos internados.
Não é o normal para os meus parâmetros, pensei, azeda.
— E foi bom para nós, nos ajudou. Olha só como nos sentimos bem,
como nos sentimos normais, agora. — Misty fez um gesto indicando a si, Vincent
e Mike. (Já ia estendendo o braço até John Joe, mas hesitou e abaixou-o.) Todos
caíram na gargalhada, até mesmo Neil, por entre os soluços.
Eu estava apatetada.
— É sério — disse Mike. — Você vai se lembrar do dia de hoje com
alegria. Foi o que me disseram no dia em que minha mulher veio aqui e disse
cobras e lagartos de mim. Que ser forçado a encarar a verdade era o começo da
minha cura.
— Mas não é verdade — disse Neil. — Ela é uma filha-da-puta
mentirosa.
Tive vontade de enfiar o punho na cara dele. Mas nem um só dos
presentes o censurou.
Mike, Vincent, Misty e John Joe ajudaram Neil a se levantar e
conduziram-no carinhosamente para fora do aposento.
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