À tarde, um homem simpático que eu ainda não conhecia veio falar
comigo.
— Como vai? — disse ele. — O nome é Neil e eu também estou no
grupo de Josephine. Não nos vimos ontem porque eu estava no dentista.
Normalmente, eu não daria nem as horas a alguém que se
apresentasse dizendo "O nome é Neil", mas havia alguma coisa nele que me
agradara.
Era expansivo, sorridente e muito jovem. Quando dei por mim, já
corrigira a postura e me esforçava um pouco para lhe causar uma boa
impressão. Embora soubesse que ele era casado, mesmo antes de ver a aliança
em seu dedo. Talvez pelo suéter sem rugas e a calça sem vincos. Senti uma
estranha ponta de decepção.
— Está se dando bem com esse bando de malucos? — perguntou ele.
Que alívio! Uma pessoa normal!
— São legais. — Dei um risinho. — Para um bando de malucos.
— E o que achou de Josephine?
— Ela é um pouco assustadora — admiti.
— Ah, aquela é outra doida — disse ele. — Fica botando idéias na
cabeça das pessoas, obrigando-as a admitir coisas que não disseram nem
fizeram.
— É mesmo? Sabe de uma coisa? Bem que eu achei ela um pouco
esquisita.
— É, você vai ver, quando chegar a sua vez — disse ele, enigmático. —
Enfim, por que está internada?
— Drogas. — Fiz uma expressão patética, para indicar que não
havia nada de errado comigo.
Ele riu, compreensivo.
— Entendo o que quer dizer. Estou internado por alcoolismo. Como a
pobre inocente da minha mulher não bebe, acha que só por que tomo quatro
cervejas nas noites de sábado isso faz de mim um alcoólatra. Só me internei para
ela largar do meu pé. Pelo menos agora isso vai provar para ela que não há nada
de errado comigo.
Durante o dia, eu já notara duas vezes a Chucrute Azedo e Celine, a
enfermeira do turno do dia, conversando sobre mim. Na hora do chá, pouco
antes do festival de batatas fritas, Celine apareceu.
— Posso dar uma palavra com você, Rachel?
Baixou um clima de desgraça iminente. Sob os gritos dos internos de
"Ihhh, Rachel, agora você se ferrou" e "Posso comer suas batatas fritas?", Celine
me levou, de cabeça baixa, para a sala das enfermeiras.
Foi como ser levada para o gabinete do diretor na escola. Mas, para
minha surpresa, Celine não parecia estar aborrecida comigo.
— Você não parece bem — disse ela. — Aliás, não pareceu bem o dia
inteiro.
— Não dormi muito na noite passada. — Suspirei de alívio, eufórica. —
E acho que talvez ainda esteja me ressentindo da diferença de fuso horário.
— Por que não disse nada?
— Não sei — sorri. — Acho que estou habituada a me sentir mal.
Quase sempre me sinto um bagaço no trabalho... — Interrompi-me bruscamente
ao ver a expressão em seu rosto. Essa não era a pessoa indicada para se discutir
noitadas da pesada.
— Por que você se sente mal no trabalho? — perguntou. Por um
momento, sua voz tranqüila quase me enganou. Mas não totalmente.
— Porque sou notívaga — limitei-me a dizer.
Ela sorriu. Com um único olhar, vi que já decretara minha sentença.
Ela sabe, pensei, alarmada. Ela sabe tudo a meu respeito.
— Acho que você deveria ir para a cama depois do chá — disse ela. —
A terapeuta de plantão e eu discutimos e achamos que não há nenhum
problema se você perder os jogos de hoje à noite.
— Que jogos?
—Todos os sábados à noite, os internos brincam de dança das
cadeiras, Red Rover, Twister, esse tipo de coisa.
(Twister - Jogo em que cada participante faz girar uma seta no centro
de um tabuleiro que contém círculos cora nomes de várias partes do corpo. O
participante deve manter a parte do corpo que sorteou encostada no círculo até o
fim da partida).
Ela não pode estar falando sério, pensei. Era a coisa mais brega que eu
já ouvira na minha vida.
— É divertidíssimo. — Ela sorriu.
Que pobre coitada deprimente você é, pensei, se essa é a sua idéia de
diversão.
— Os internos espairecem um pouco — prosseguiu. — E é a única hora
da semana em que não há nenhuma enfermeira ou terapeuta presente, de modo
que vocês podem fazer imitações de nós...
No momento em que ela disse isso, me dei conta de uma das coisas
que tinham me incomodado o dia inteiro. Os internos raramente ficavam
sozinhos. Mesmo durante as refeições, sempre havia alguém da equipe sentado
discretamente entre eles.
— Portanto, depois do chá, vá direto para a cama — ordenou.
Esperançosa, imaginei que talvez antes pudesse fazer uma massagem
ou passar alguns minutos numa cama de bronzeamento artificial.
— Será que primeiro eu...?
— Cama — ela me interrompeu, firme. — Chá, e depois, cama.
Você está cansada e não queremos que fique doente.
Que coisa mais louca, ir para a cama às sete da noite de um sábado.
Em geral, só me encontrariam deitada a essa hora se eu ainda não tivesse
acordado da noite anterior. (O que não era raro, para ser franca. Principalmente
quando ficava acordada até tarde e cheirava cocaína.)
A sensação de isolamento e alienação que me acompanhara durante
todo o dia se intensificou, quando sentei na cama, apática, folheando as revistas
de Chaquie, a chuva fustigando a janela que batia, deixando o vento entrar.
Sentia-me sozinha e com medo. E um fracasso. Era noite de sábado e eu devia
estar me produzindo para sair e me divertir. Em vez disso, estava na cama.
Minha maior preocupação era Luke. Eu nunca me sentira tão
impotente na vida. Sabia que ele sairia aquela noite e se divertiria sem mim.
Poderia até — minhas entranhas se encolheram de medo — poderia até conhecer
outra garota. E levá-la para o seu apartamento. E transar com ela...
Ao pensar nisso, fui invadida por um ímpeto quase incontrolável de
pular da cama, enfiar algumas roupas e, não sei como, ir a Nova York para
impedi-lo. Desesperada, apanhei um punhado de Pringles e as enfiei na boca,
graças ao que o pânico diminuiu um pouco. As Pringles eram um grande
consolo. O tubo fora doado por Neil, ao saber que haviam me mandado cedo
para a cama. Minha intenção era comer apenas uma ou duas, mas meus dedos
acabaram abrindo caminho até o fundo do tubo. Não consigo pegar no sono
facilmente se houver algum saco aberto de salgadinhos por perto.
Sabia que não era justo pedir aos pobres viciados que passassem sem
os respectivos objetos de seus vícios, quando gente como eu, que não tinha
nenhum problema, estava ingerindo livremente. Não seria certo balançar a
tentação bem debaixo dos seus narizes. Mas, ainda assim...
Podia ouvir as pancadas, as batidas, os gritos e risos, enquanto os
outros brincavam de dança das cadeiras no aposento que ficava embaixo de meu
quarto.
Quando Chaquie subiu para dormir, tinha o rosto vermelho e feliz.
Por pouco tempo.
— Não vi você na missa hoje à noite — disse, com os lábios apertados.
(Vinha um padre todo sábado rezar uma missa para os interessados.)
— É isso mesmo, não viu — disse eu, alegre.
Ela me fuzilou. Sorri, com ar petulante.
Então, deu início a mais uma de suas cantilenas. Dessa vez, era sobre
o mal das mães que trabalham fora. Puxei as cobertas acima da cabeça com
grande espalhafato, dizendo "boa-noite". Mas isso não fez a menor diferença.
Chaquie tinha algumas coisas para desabafar e não estava se importando com
quem.
— ... e o marido chega em casa depois de um longo dia no escritório —
ou no salão de beleza... — permitiu-se um sorrisinho ao dizer isso — ... e a casa
está um pandemônio, as crianças aos gritos...
— O jantar não está na mesa — interrompi-a debaixo de meus lençóis,
decidida a ganhar a corrida.
— É isso mesmo, Rachel. — Ela pareceu agradavelmente surpresa. —
O jantar não está na mesa.
— As camisas dele não foram passadas.
— É isso mes...
— As crianças chegam da escola e encontram a casa vazia, entregue às
baratas...
— É isso mes...
— Comem batatas fritas e biscoitos, em vez de uma refeição nutritiva,
servida na hora...
— Exatam...
— Assistem filmes pornográficos na tevê, cometem incesto, a casa pega
fogo e, como a mãe não está lá para tomar uma providência, morrem!
Seguiu-se um silêncio. Passado algum tempo, dei uma espiada debaixo
de minhas cobertas.
Chaquie me encarava, confusa. Tinha a forte suspeita de que eu estava
debochando dela, mas não a certeza.
Se eu já achava que a detestava antes, agora sabia que a detestava
mesmo.
Cretina fascista, pensei com meus botões. Conhecia o seu tipo. Era
membro da Liga das Mães da Direita Católica Contra o Prazer, ou que nome
tivessem.
Pouco depois, com um silêncio azedo, Chaquie apagou a luz e foi para
a cama.
Graças a Deus, e à enorme exaustão, adormeci.
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