quarta-feira, 6 de julho de 2011

Férias!! - MARIAN KEYES Cap.18


Meu dia não chegou a entrar nos eixos. Sentia-me tonta e nauseada,
sem conseguir acordar direito.
Pensava em Luke o tempo todo. Estava cansada demais para me
compenetrar de sua perda com lucidez, mas a dor não parava de rumorejar,
semiconsciente.
Tudo era estranho e diferente, como se eu tivesse aterrissado em outro
planeta.
Ao fim do nauseabundo café da manhã, tive que arear várias frigideiras
enormes, sujas de gordura. Depois, corri para o quarto e passei vinte minutos
lambuzando a cara de maquiagem. Eu tinha um desafio e tanto nas mãos.
Toda vez que não dormia o bastante, surgiam zonas vermelhas de
escamação no meu rosto. Eram difíceis de disfarçar, porque, mesmo soterrandoas
sob toneladas de base, as partes vermelhas ficavam escamando, levando a
base consigo e deixando as manchas em destaque outra vez. Fiz o que pude,
mas, mesmo maquiada, parecia um cadáver.
Tornei a me arrastar pelas escadas, forçando um sorriso, e topei com
Misty 0'Malley, também arrastando-se com ombros caídos, ar azedo e nenhuma
maquiagem. Com minha cara sorridente, marrom e pegajosa, no ato me senti
uma maçã caramelada idiota.
Don escapuliu na minha direção e me agarrou pela manga.
— Lavou as mãos? — indagou, ansioso.
— Por quê?
— Porque está na hora da aula de CULINÁRIA — guinchou, os olhos
saltando das órbitas com minha estupidez. — É sábado de manhã, temos
HOBBIES!
Uma miragem em que massageavam com delicadeza meus pontos de
tensão tremeu e se desfez. Não fiquei nem um pouco feliz. Uma aula de culinária
ficava a apenas um passo de artesanato em vime.
— Você vai adorar Betty — garantiu um outro.
Betty era a professora. Loura, perfumada e popular.
Stalin a agarrou e saiu valsando com ela pelo aposento.
— Ah, minha menina querida — dizia.
Clarence me deu uma cotovelada.
— Ela não é linda? — sussurrou, como o imbecil que era. — O cabelo
dela não é lindo?
— A postos, pessoal. — Betty bateu palmas.
Quando estávamos prestes a começar, o Dr. Billings chegou e fez um
sinal com o dedo para Eamonn, cujos olhos brilhavam cobiçosamente para um
saquinho de passas, e rebocou-o consigo.
— Aonde ele vai? — perguntei a Mike.
— Ah, ele não tem permissão para cozinhar — disse Mike —, porque
perdeu a cabeça na semana passada e comeu uma tigela inteira de massa de
bolo. Crua — frisou, para não dar margem a dúvidas.
A lembrança parecia ser-lhe dolorosa.
— A cena foi de dar engulhos — disse. — Ele agarrou aquela tigela com
uma força...
— Meu Deus, foi um horror — secundou-o Stalin, estremecendo. —
Cheguei a perder o sono de noite.
— E onde é que ele está agora? — Não me agradara a maneira
peremptória como Eamonn fora rebocado.
— Sei lá — Mike deu de ombros. — Praticando algum outro hobby.
— Talvez esteja aprendendo a fazer cerveja caseira — sugeriu Barry, o
Bebê.
Isso provocou um escândalo de gargalhadas. Batiam nas coxas,
esbaldando-se. "Fazer cerveja caseira, essa é boa!"
— Ou fazendo... ou fazendo... — Clarence ria tanto que mal conseguia
falar — ...ou fazendo degustação de vinhos — desfechou, finalmente. Os suéteres
marrons explodiram em gargalhadas.
Ofegavam de hilaridade, rindo tanto que eram obrigados a se apoiar
uns nos outros.
— Eu até encaro uma tigela de massa de bolo, se me deixarem
fazer degustação de vinhos — disse Mike, morrendo de rir.
Mais gargalhadas.
Eu não ria. Queria deitar e dormir por muito, muito tempo. A última
coisa que queria era cozinhar.
Os outros trocavam piadas entre si, alegremente, enquanto eu rezava
para morrer. Podia ouvir o que diziam, mas suas vozes pareciam chegar de
muito longe.
— Vou fazer um tipo fabuloso de... como direi... pão, que comi em
Islamabad — murmurou Fergus, a vítima do LSD.
— E tem maconha para o recheio? — indagou Vincent.
— Não — admitiu Fergus.
— Então, não vai ser como o pão que você comeu em Timbuctu, vai?
Fergus deu as costas, seu olhar morto de terreno baldio ainda mais
deserto.
—Já pensou se minha mulher me visse agora? RAR, RAR, RAR! —
soltou Stalin, pesando açúcar de confeiteiro. — Ela nunca me viu sequer
esquentar uma chaleira d'água.
— Não admira que tenha conseguido uma ordem judicial proibindo
você de chegar perto da casa dela — comentou Misty 0'Malley.
Todos soltaram muxoxos de desaprovação, dizendo "ô, Misty", mas em
tom bem-humorado. Então, o agressivo Vincent saiu-se com essa:
— Não é porque ele não sabe cozinhar, e sim porque vive quebrando as
costelas dela.
Meus ouvidos zuniram de tal modo, que achei que ia desmaiar.
Não podia ser verdade, podia?, pensei, horrorizada. Stalin era um
homem simpático e afável, não faria uma coisa dessas. Vincent devia estar
brincando. Mas ninguém riu. Ninguém disse nada.
Passou-se um bom tempo antes que os internos voltassem a conversar
e trocar piadas. Stalin não deu mais uma palavra.
Eu continuava sentindo a mesma vontade horrível de vomitar. Se não
tivesse me restado uma gota de sanidade, juraria que tomara uma carraspana
na noite anterior.
Felizmente, Betty era simpática. Perguntou se havia algo em particular
que eu gostaria de fazer.
— Alguma coisa fácil — murmurei.
— Que tal bolinhos de coco? Dá para fazer até dormindo. Como era
exatamente o que eu já sentia estar fazendo, concordei.
— Passei a semana inteira planejando fazer isso — anunciou Mike,
eufórico, apontando uma fotografia num livro. — É uma tartetatin.
— O que é isso? — indagou Peter.
— Uma espécie de torta de maçã francesa de cabeça para baixo.
— E qual é o problema em fazer ela de cabeça para cima? — quis saber
Peter. — Você foi criado bem longe desses troços franceses de cabeça para baixo.
QUÁ, QUÁ, QUÁ, QUÁ, QUÁ!
Betty circulava pela cozinha, ajudando aqui, fazendo sugestões acolá.
("Chega de manteiga, Mike, você não quer ter um ataque do coração, quer?"
"Não, Fergus, sinto muito. Vai ter que usar um forno comum, o seguro contra
incêndio não cobre nem um barraco num morro. Desculpe se não vai sair
autêntico." "Não, Fergus, sinto muito mesmo." "Não, Fergus, não estou tratando
você como se fosse uma criança." "Não, Fergus, não tenho nada contra drogas."
"Pois fique você sabendo, Fergus, que eu fumei maconha uma vez." "Dá licença?
Eu traguei, sim") Para alguém se sentindo horrivelmente mal, como eu, havia
qualquer coisa de confortante em medir e peneirar a farinha, o açúcar e o coco
ralado (que minha mãe chamava de "coco encurralado"), quebrar os ovos
(parando por um momento, devido a uma breve ânsia de vômito), bater tudo
numa tigela e despejar a mistura pegajosa em forminhas de papel decoradas
com ramos de azevim. Isso me fez lembrar de quando eu era pequena e ajudava
minha mãe, antes de ela desistir de fazer doces para sempre.
Fiquei longe de Chris, pois sabia que ele não ia mais querer saber de
mim se visse de perto minha cara de cadáver e as manchas vermelhas. Mas foi
difícil, porque a atenção que ele me dispensara na véspera fez com que eu me
sentisse um milionésimo melhor em relação a Luke. Se outro homem quisera
conversar comigo, na certa eu não era tão insignificante quanto Luke me achava,
não é mesmo?
Furtivamente, observei Chris amassando pão preto. Suspirei,
desejando que fossem meus mamilos que estivessem na tábua coberta de
farinha.
Lá para as tantas, vi-o conversar com Misty 0'Malley, e ela deve ter dito
alguma coisa engraçada, porque ele riu. O som de sua risada e o lampejo azul de
seus olhos foram uma punhalada em mim. Queria que fosse eu a fazê-lo rir.
Bastou me sentir enciumada e rejeitada por Chris, para na mesma
hora me lembrar de como me sentia rejeitada por Luke. A depressão me arrastou
para o fundo do poço.
Depois da aula de culinária, veio o almoço, em seguida um filme sobre
gente bêbada e, por fim, mais e mais xícaras de chá. Passei por tudo isso como
se fosse um pesadelo.
Volta e meia, a pergunta O que estou fazendo aqui? passava por minha
cabeça. E então eu levava minha cabeça para um canto e tinha uma boa
conversa com ela, lembrando-a dos artistas, da desintoxicação, enfim, da oitava
maravilha do mundo que era o Claustro. Profundamente aliviada, voltava a me
lembrar de tudo e compreendia como era uma pessoa de sorte. Mas, dali a
pouco, me pegava fitando embasbacada os homens de meia-idade, as paredes
amarelas, o nevoeiro denso de fumaça de cigarro, a sordidez daquilo tudo, e
voltava a me perguntar: O que estou fazendo aqui?
Era como usar sapatos com solas escorregadias. O tempo todo eu
pensava que, tão logo terminasse o que quer que estivesse fazendo, viraria o jogo
e faria algo legal. Mas não fazia. No minuto em que uma coisa acabava,
começava outra. E eu não tinha energia para lutar contra isso, era mais fácil
seguir o rebanho.
Algo me preocupava. Havia uma idéia na minha cabeça que eu não
conseguia alcançar, pois escapulia de mim.

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