quarta-feira, 6 de julho de 2011

Férias!! - MARIAN KEYES Cap.17


Bem no meio de um sonho maravilhoso, fui acordada por uma
estranha brandindo uma lanterna na minha cara.
— Rachel, está na hora de acordar.
Estava escuro como breu e gelado. Eu não fazia idéia de quem ela
fosse. Concluí que devia estar tendo uma alucinação, portanto dei-lhe as costas
e tornei a fechar os olhos.
— Vamos, Rachel — ela cochichou alto. — Não acorde Chaquie.
A menção a Chaquie fez com que a realidade arrombasse minha
consciência. Eu não estava na minha cama em Nova York. Estava no Claustro,
onde uma doida ambulante tentava me acordar às altas da madrugada. Devia
ser um dos internos mais perturbados, que fugira de seu quarto trancafiado no
sótão.
— Oi — disse-lhe eu. — Volte para sua cama. — Amigável, mas firme.
Agora, se Deus quisesse, poderia voltar a dormir.
— Sou a enfermeira do turno da noite — disse ela.
— E eu sou o Palhaço Coco — rebati. Podia ganhar dela disparado em
matéria de loucura.
— Vamos, você está na equipe do café da manhã.
— E por que Chaquie não está na equipe do café da manhã? — Eu
tinha ouvido em algum lugar que era melhor argumentar com os loucos.
— Porque ela não está na equipe do Don.
De repente, as palavras "equipe do Don" despertaram em mim uma
vaga lembrança, a um tempo estranha e desagradável.
— Eu estou... eu estou... na equipe do Don? — perguntei, titubeante.
Acabava de me dar conta de que talvez estivesse. Eu não tinha concordado com
alguma coisa na noite anterior...?
— Está.
Uma sensação de enorme vazio se abateu sobre mim. Talvez eu tivesse
mesmo que me levantar, no rol das contas.
— Bom, acabo de me demitir — improvisei, esperançosa.
Ela riu de um jeito que, em outras circunstâncias, poderia ser
considerado amável.
— Você não pode se demitir — me chaleirou. — Quem vai fazer o café
da manhã, se você não for? Não pode deixar todo mundo na mão.
Eu estava cansada demais para discutir. Na verdade, estava cansada
demais para compreender o que estava acontecendo e me aborrecer. Uma coisa
eu captei, uma única coisa. Se não me levantasse, as pessoas poderiam não
gostar de mim. Mas iria encontrar aquele tal de Don, quem quer que fosse, e
entregar-lhe meu pedido de demissão na mesma hora.
Estava tão cansada e com tanto frio que achei que poderia morrer de
choque térmico se entrasse debaixo do chuveiro. Também tinha medo de
acender a luz e acordar Chaquie, pois havia o risco de ela começar a falar comigo
outra vez. Assim, em plena escuridão, vesti as mesmas roupas que havia jogado
no chão, na noite anterior.
Arrastei-me até o banheiro para escovar os dentes, mas estava
ocupado. Enquanto eu tiritava no mezanino, esperando que desocupasse, a
louca da lanterna reapareceu.
— Você está de pé, boa menina — disse ela, ao me ver. — Desculpe por
me apresentar desse jeito. Sou Monica, uma das enfermeiras do turno da noite.
Passei a escova de dentes para a outra mão, a fim de poder
cumprimentá-la. Parecia ser uma pessoa afável e afetuosa. Maternal. Mas não
como a minha mãe.
A porta finalmente se abriu e, em meio a uma nuvem de loção pósbarba,
Oliver, o sósia de Stalin, saiu valsando do banheiro. Vestia apenas as
calças e tinha uma toalha graciosamente jogada ao redor dos ombros
rechonchudos. Parecia grávido de nove meses. Sua barriga imensa, nua e
coberta de pêlos grisalhos, parecia ter vida própria.
— Hora da loção de limpeza, hein? — disse ele, piscando para mim. —
É todo seu.
Depois de jogar um pouco de água na cara desanimada, arrastei-me
pelas escadas. Estava pronta para encontrar o tal de Don e explicar-lhe em tom
de voz firme que era meu triste dever apresentar-lhe o meu pedido de demissão...
No momento em que entrei na cozinha, onde fazia um frio mortal,
um homenzinho gorducho de meia-idade correu na minha direção. Usava uma
camisa-de-meia, e tive a mesma sensação de ter tomado alucinógenos que
experimentara pouco tempo antes.
— Boa menina — disse ele, esbaforido e sem fôlego. — Já estou com os
chouriços na frigideira. Quer se encarregar das salsichas...?
— Você é o Don? — perguntei, surpresa.
— E quem mais haveria de ser? — tornou, com ar irritado. Fiquei
confusa. Don era um interno, eu já o vira várias vezes na véspera, no fragor dos
suéteres marrons. Por que ele era um dos chefes de equipe? Foi o que lhe
perguntei, titubeante.
E ele me explicou aquilo de que eu já desconfiava. Seguindo a tradição
da Clínica Betty Ford, os próprios internos do Claustro desempenhavam a maior
parte das tarefas domésticas.
— Isso é para nos ensinar a ter responsabilidade e a trabalhar em
equipe — disse ele, pulando de um pé para o outro. — E eu sou o chefe desta
equipe porque já estou aqui há quase seis semanas.
— Quantas equipes são? — perguntei.
— Quatro — disse Don. — Cafés da Manhã, que somos nós, Almoços,
Jantares e Aspirador de Pó.
Tratei de explicar que não poderia ficar na sua equipe. Ou em
nenhuma outra, para dizer a verdade. Era alérgica a tarefas domésticas e, de
mais a mais, não havia nada de errado comigo, eu sabia tudo que precisava
saber sobre responsabilidade e trabalho em equipe.
— É melhor pôr mãos à obra — interrompeu ele. — O pessoal vai
descer a qualquer momento, com o estômago nas costas, exigindo o café da
manhã. Vou pegar os ovos.
— Mas...
— E fique de olho em Eamonn, sim? — pediu, ansioso. — Ele comeria
as fatias de toucinho cruas, se pusesse as mãos nelas. — Dito o que, afastou-se,
apressado.
— Não é justo com os chefes de equipe que ponham um CC no Cafés da
Manhã — ergueu a voz, por cima do ombro.
—O que é um CC? — ergui a minha em resposta.
— Um comedor compulsivo — respondeu uma voz abafada.
Virei-me e vi que Eamonn também estava na cozinha. Não sei como
não o notara até então. Deus sabe que ele ocupava metade dela.
A razão pela qual sua voz saíra abafada era o fato de ele ter um pão de
fôrma quase inteiro na boca.
— Você vai me denunciar por isto, não vai? — perguntou, com uma
expressão envergonhada, ao que enfiava na boca uma fatia atrás da outra.
— Denunciar você? — exclamei. — Por que eu faria isso?
— E por que não? — Sua voz e expressão eram de mágoa. — Você tem
a obrigação de se preocupar comigo, a obrigação de me ajudar a superar meus
vícios, assim como eu tenho a obrigação de ajudar você.
— Mas você é um homem adulto — tornei, confusa. — Se quiser comer
um pão de fôrma tamanho-família... — Calei-me por um momento, encostando a
mão na iguaria. — ...um pão de fôrma tamanho-família gelado, em menos de um
minuto, o problema é seu.
— Pois muito bem — disse ele, agressivo. — É o que vou fazer.
Eu havia dito a coisa errada. E só estava tentando ser simpática.
— UBA! — Encarava-me com ódio, enchendo a boca com mais e mais
fatias de pão. — E bô ubê odra aora besbo!
Irredutível, apesar da boca cheia, partiu para um segundo pão de
fôrma. O segundo de que eu tinha conhecimento, pelo menos. Só Deus sabe
quantos já comera antes de eu chegar.
Ouvi passos vindos do corredor. Era Don, que voltava com Stalin a
reboque, os dois carregando caixas de ovos.
Voltou-se para mim, com a expressão ultrajada:
— Que é que está havendo aqui? Ah, olha só, Rachel, ele está comendo
o pão quase todo, assim não vai sobrar nada para as TORRADAS! — Seu timbre
de voz fora num crescendo durante a frase, até o gran finale "TORRADAS",
entoado num agudo de soprano, desses de estilhaçar vidro.
Sentia-me nauseada. Infeliz. Estava desorientada com a mudança de
fuso horário, pelo amor de Deus! E eram para ser férias, que merda! Eu não era
obrigada a acordar tão cedo assim nem quando ia para o trabalho! Lamentava
muito que Eamonn tivesse comido todo o pão, não me dera conta de que não
havia mais, ou poderia ter tentado impedi-lo. Agora, todo mundo ficaria com ódio
de mim...
— Desculpe — pedi, quase às lágrimas.
— Ah, deixa prá lá — disse Don, canhestro em sua gentileza. — Nem o
próprio diabo teria conseguido impedi-lo.
— Desculpe — sussurrei de novo. Olhei para Don com os olhos cheios
de lágrimas, bati as pálpebras uma só vez e isso bastou para derretê-lo.
— Não se preocupe — ele me tranqüilizou. — Há uma semana que ele
vem fazendo isso todos os dias. O pessoal já está acostumado a ficar sem as
torradas.
Dito o que, pôs-se a quebrar ovos numa vasilha. Era cedo demais para
olhar para trinta e seis ovos crus. Meu estômago se embrulhou.
— Você está passando bem? — perguntou Stalin, ansioso.
— Ela não está passando bem! — declarou Don, nervosíssimo.
— Seu idiota. A menina não está passando bem. Pelo amor de Deus,
deixa a criança sentar!
Estava tão preocupado, que escorregou num pedaço de pele de
toucinho e deu um encontrão em nós. Ato contínuo, levou-me até uma cadeira.
— Quer que eu chame a enfermeira para você? Chamem a enfermeira!
— ordenou a Stalin e Eamonn. — Põe a cabeça entre as orelhas! Quer dizer,
entre os joelhos.
— Não — disse eu, fraca. — Estou bem, foram só os ovos, e eu não
dormi muito...
— Você não está esperando a visita da cegonha, está? — perguntou
Stalin.
— Que pergunta! — chocou-se Don. — É claro que a menina não está
esperando a visita da cegonha...
Chegando a cara gorducha a um centímetro da minha:
— Não está, está?
Fiz que não com a cabeça.
— Viu só? — declarou para Stalin, triunfante.
Tempos depois, fiquei sabendo que Don tinha quarenta e sete anos,
vivia com a mãe e era um "solteirão inveterado". Por algum motivo, isso não me
surpreendeu.
—Tem certeza de que não engoliu um caroço de azeitona? — Stalin
voltou à carga. — Minha Rita não podia olhar para um ovo, quando estava
esperando os quatro primeiros.
— Tenho.
— Como é que você sabe?
— Sabendo, ora essa.
Ele que fosse lamber sabão se achava que eu ia lhe dar satisfações
sobre meu ciclo menstrual.
Assim, Don, Eamonn, Stalin e um rapazinho chamado Barry, que eu
me lembrava de ter visto muitos anos atrás — ou seja, ontem —, prepararam o
café da manhã. Fiquei sentada numa cadeira, bebericando água, respirando
fundo e tentando não vomitar. Barry era aquele que parecia ter quatorze anos e
gritara para Sadie, na véspera: "É, uma imprestável de merda."
Pouco antes do café, lembrei-me de que em breve veria Chris, e não
estava usando um pingo de maquiagem. Por entre a neblina da exaustão, da
náusea e da tristeza, tremeluziu uma tênue centelha de instinto de
sobrevivência. Mas, quando tentei me arrastar de volta pelas escadas acima para
passar um pouco de blush e rímel, Monica, a maternal enfermeira, postou-se
bem no meio do meu caminho. O café estava prestes a ser servido, e eu não ia a
parte alguma até que terminasse.
— Mas... — tentei, fraca.
— Diga o que quer do quarto e eu vou lá buscar — ofereceu-se ela, com
um sorriso amável mas muito, muito firme.
É claro que eu não podia lhe dizer o que queria. Ela me julgaria frívola.
Assim, voltei ao refeitório com o rabo entre as pernas e a cabeça baixa, para não
correr o risco de Chris me ver sem maquiagem e descobrir a baranga que eu era.
Consegui passar o café da manhã inteiro sem que meu olhar cruzasse com o de
ninguém.
Todos se comportaram de maneira jovial. Até mesmo em relação à falta
de torradas.
— O quê, não tem torrada? DE NOVO! — Peter riu. Mas também,
aquele teria rido mesmo que soubesse que um incêndio reduzira sua casa a
cinzas e toda a sua família fora exterminada num massacre.
— Não tem torrada, de novo — repetiu um outro.
— Não tem torrada, de novo.
— Não tem torrada, de novo. — A mensagem correu pela mesa.
— Aquele filho-da-puta gordo, Eamonn — murmurou alguém, em tom
rancoroso. Para minha surpresa, fora Chaquie.
Entre os ovos de embrulhar o estômago e as salsichas e fatias de
toucinho nada vegetarianos, não comi quase nada. O que não podia ser mau,
decidi.
Mas meu cansaço e sensação de estranhamento eram tais, devido a
tudo por que passara, que só tarde da noite fui me dar conta de que não haviam
servido uma única fruta no café da manhã. Nem uma maçã com a casca
amassada ou uma banana podre, que dirá o bufê quilométrico de frutas tropicais
fresquinhas que eu esperava.

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