quarta-feira, 6 de julho de 2011

Férias!! - MARIAN KEYES Cap.14


Para a caminha. As deixas: bocejos, braços espreguiçados, olhos
esfregados com os nós dos dedos, lábios estalados, murmúrios de "miam-miammiam",
uma camisola dos Ursinhos Carinhosos debruada de pêlo sintético e o
aconchego sob o peso protetor de um edredom, pronta para receber, agradecida,
doze horas de sono reparador, energizante e feliz.
Vai contando!
Ou, se preferir, o cacete!
Havia um choque à minha espera quando entrei no quarto, já quase
desabando, prontinha para me jogar na cama sem tirar a maquiagem. (Um luxo
muito especial, o de não tirar a maquiagem, reservado para noites
particularmente exaustivas. Ou de alto teor alcoólico, é claro.) Para meu
desânimo, descobri que Chaquie já estava no quarto. Droga, eu tinha me
esquecido dela.
Estava sentada na cama, os elegantes tornozelos cruzados, fazendo
algo que, ao meu olho leigo, pareceu ser uma manicure. Eu nunca precisara de
uma manicure para dar um jeito nas minhas unhas. Meu vício de roê-las até o
sabugo desde que me entendia por gente dava conta do recado perfeitamente.
— Ah, oi — disse eu, nervosa. Será que teria que conversar com ela...?
— Olá, Rachel.
Pelo visto, sim.
— Entra, senta aí. — Deu um tapinha convidativo na cama. — Fiquei
com muita pena de você no jantar, sentada ao lado daquele animal nojento,
John Joe. Os ruídos que saíam daquele homem. Em casa, deve comer com os
porcos.
Que alívio! Era como se desatassem o apertado nó de tensão que havia
em meu peito.
— É verdade — suspirei, encantada por me encontrar em companhia
de alguém que sentia o mesmo que eu. — Não podia acreditar. Nunca ouvi nad...
Sem dar uma palavra, ela fez que sim com a cabeça, como eu, durante
um ou dois segundos, enquanto cutucava as unhas com um palito de picolé. De
repente, sem mais nem menos, perguntou:
— Você é casada, Rachel?
— Não — respondi. Durante dois segundos tinha conseguido deixar de
pensar em Luke, mas a pergunta me atirou de volta à estaca zero. Tomada pela
angústia, por um segundo simplesmente não consegui acreditar que estivesse
tudo acabado entre nós.
— E você, é casada? — perguntei, a contragosto.
— Ó Senhor, sou! — Revirou os olhos para mim, indicando os longos
anos de seu sofrimento.
Compreendi que não estava nem um pouco interessada em mim.
Simplesmente começara a conversa para depois puxá-la para si.
— Para mal dos meus pecados! — Deu-me um largo sorriso. — O nome
de meu marido é Dermot. — Pronunciou-o "Durm't", para que eu soubesse que
ela era de bom nível social.
Esbocei um débil sorriso.
— Vinte e cinco anos felizes — disse ela, logo se apressando em
acrescentar: — Quando casei, ainda estava na escola.
Forcei outro sorriso.
Do nada, ela atirou com força o palito de picolé no chão.
— Não consigo acreditar que Durm't me pôs aqui! — exclamou. Chegou
mais perto de mim e, para meu horror, seus olhos estavam cheios de lágrimas.
— Simplesmente não consigo acreditar. Fui uma esposa devotada todos esses
anos, e essa é a paga que recebo!
— Você está internada, er, por alcoolismo? — Procurei dar um tom
discreto à pergunta. Não queria que ela tivesse a impressão de que eu a estava
acusando de alguma coisa.
— Ora, por favor — disse, fazendo um gesto desdenhoso com a mão. —
Eu, uma alcoólatra? — Arregalou os olhos bem pintados em sinal de
incredulidade. — Alguns Bacardis com Coca-Cola com as amigas, de vez em
quando. Para relaxar. Deus sabe como mereço, ainda mais me matando de
trabalhar como me mato por aquele homem.
— Mas por que Durm't pôs você aqui? — perguntei, alarmada.
Alguns Bacardis com Coca-Cola não pareciam nada de mais.
Logo me arrependi por tê-lo chamado de Durm't. Era um vício meu
horrível, o de pegar o sotaque da pessoa com quem estava conversando.
— Nem me pergunte, Rachel — disse Chaquie. — Você acha que eu
tenho cara de alcoólatra?
— Não, pelo amor de Deus. — Ri, em tom íntimo e compreensivo. — E
eu, tenho cara de toxicômana?
— Isso eu não saberia dizer, Rachel - respondeu, sem conseguir ocultar
o desagrado em sua voz. — Não freqüento esse tipo de círculo.
— Pois bem, não sou.
Sua mocréia, pensei. Ficara magoada. Principalmente por ter sido tão
legal com ela, dizendo que não parecia uma alcoólatra.
— Onde a sua família mora? — perguntou, de novo mudando
bruscamente de assunto.
— Em Blackrock — murmurei, mal-humorada.
— Que rua?
Disse a ela. Ela obviamente a aprovou.
— Ah, eu conheço. Uma amiga minha morava lá, mas vendeu a casa e
comprou outra maravilhosa, em Killiney, com cinco banheiros e vista para a
baía. Mandou buscar um arquiteto famoso em Londres para decorá-la.
— É mesmo? — perguntei, maldosa. — Quem é ele? Entendo um pouco
de arquitetura. — Não entendia bulhufas, é claro, mas ela tinha me irritado.
— Ah... como é mesmo o nome dele? — perguntou-se, distraída.
— Geoff não sei das quantas.
— Nunca ouvi falar.
Ela permaneceu impassível.
— Nesse caso, você não entende tanto assim de arquitetura — disse,
com ar superior.
Bem-feito por ser sacana, Rachel. Que isso lhe sirva de lição. Ah, sim,
pensei, amarga, me serviu direitinho de lição. Da próxima vez, vou ser ainda
mais sacana com ela.
Em seguida, ela se pôs a falar sobre sua casa. Sentia uma atração
patológica por banheiros de suíte.
— Nossa casa é perfeita, parece uma daquelas de revista de decoração!
— declarou. — Embora não tenhamos mandado buscar nenhum arquiteto
famoso em Londres para decorá-la. — Novamente revirou os olhos, com ar
gaiato, incentivando-me a sorrir com ela.
E eu sorri. Vivia ansiosa por agradar, mesmo quando detestava o
objeto do meu agrado. Meu "agradatário".
— Fica em Monkstown — contou ela, orgulhosa. — Você ficou fora um
bom tempo, então não pode saber, mas Monkstown promete. Ih, tem artistas aos
montes. Chris de Burgh mora algumas casas depois da minha.
Estremeci.
— Aquele que canta com as sobrancelhas? Bom, lá se vai a vizinhança
por água abaixo. — Quer dizer, ela não podia gostar mesmo dessa proximidade,
podia?
— Espero que você não o escute ensaiando — prossegui. — Isso seria o
golpe de misericó...
Interrompi-me ao ver a expressão em seu rosto. Ó meu Deus. Ó meu
Deus. Não havíamos começado nada bem. Eu esperava de todo coração que ela
fosse embora logo.
— Er, há quanto tempo você está aqui, Chaquie?
— Sete dias.
Merda!
Então, para meu pavor, ela começou a falar. A falar pelos cotovelos. Eu
pensava que meu comentário sobre Chris de Burgh tivesse posto um ponto final
no diálogo, o que viria a calhar mais do que posso dar uma idéia. Mas,
subitamente, diante de meus olhos exaustos, ela deu uma guinada e se
transformou no coelhinho Duracell da conversa jogada fora. O papo sobre
banheiros e maridos não passara de um preâmbulo, enquanto ela esperava que
esvaziassem a pista. Então, em resposta a um sinal que só ela pareceu ouvir,
entrou em sobremarcha. Pé na tábua, fazendo roncar o motor, pisando fundo no
acelerador da conversa.
A essência de seu amargurado monólogo era a de que não se podia
confiar em ninguém. Nem em ginecologistas, nem em leiteiros, nem em maridos.
Principalmente maridos.
Suas palavras davam voltas vertiginosas na minha cabeça.
— ...eu disse a ele que não podia ter me trazido um litro de leite na
terça-feira, porque eu e Durm't estávamos viajando nesse dia... — (Seu leiteiro
estava sob suspeita.)
— ...e como é que eu posso confiar nele da próxima vez que enfiar as
mãos debaixo da minha saia...? — (Seu ginecologista estava tendo um caso com
uma de suas amigas.)
— ...ainda não consigo acreditar que ele me pôs aqui! Como pôde?! —
(Durm't a magoara.)
— ...tremo só de pensar nas inúmeras vezes em que tirei a roupa na
frente dele... — (Acho que esse era o ginecologista conquistador. Embora mais
tarde eu tenha ficado sabendo de coisas sobre Chaquie que indicam que pode
muito bem ter sido o leiteiro.)
Sentia-me fraca e nauseada, a toda hora perdendo o fio da meada.
Torcia para desmaiar, ter um ataque ou coisa que o valha, mas de quando em
quando voltava a mim, apenas para descobrir que ela ainda estava a todo o
vapor.
— ...e era leite integral, ainda por cima, e Durm't e eu só tomamos leite
desnatado, porque, afinal das contas, a gente tem que se cuidar, não é mesmo...
— (O leiteiro outra vez.)
— ...agora, sempre que estou na presença dele, sinto que me olha de
um jeito lascivo... — (Ou o ginecologista, ou Durm't. Pensando bem, talvez não
fosse Durm't.)
— ...que foi que eu fiz para merecer ser jogada aqui dentro? Como ele
foi capaz?... — (Durm't, sem sombra de dúvida.)
— ...e ele disse que não havia nada que pudesse fazer, porque as
contas são feitas por computador. E eu disse: "Não fale assim comigo,
rapazinho..." — (Talvez o leiteiro.)
— ...e ficaram curtas demais para a janela de sacada, faltando bem uns
quinze centímetros. Por isso, me recusei a pagar... — (Sinto muito, não faço a
menor idéia.)
E ela continuou falando sem parar, enquanto minhas costas se
colavam ao espaldar da cama como se uma força centrífuga me achatasse contra
a madeira. Perguntava-me se parecia tão desesperada quanto me sentia.
Talvez fosse apenas porque eu tivera um dia longo e estranho, mas o
fato é que meu ódio por ela era extremamente sincero. Não culpava Durm't por
tê-la posto no Claustro. Se eu fosse casada com Chaquie, teria muito prazer em
encarcerá-la numa instituição. Na verdade, desejaria vê-la morta. Mas não
contrataria um assassino profissional. Por que me privaria desse prazer?
Lutando contra aquele dilúvio verborrágico, arrastei-me para fora de
sua cama, a fim de tentar dormir um pouco. Mas não queria me despir na frente
dela. Nunca vira a mulher mais gorda, quer dizer, mais magra. Sentia um pudor
adâmico da minha nudez, como se Chaquie fosse Deus e eu tivesse acabado de
morder a maçã proibida. Se bem que, como Adam era o nome do namorado de
minha irmã Claire, talvez esta não fosse a analogia exata. Adam não parecia do
tipo que sentiria pudor de tirar sua folha de parreira na frente de alguém.
Quanto a mim, teria adorado tirar a minha na frente dele. Tinha dois metros e
sessenta e oito de altura, era lindo de alagar a calcinha e Claire me prometera
que, quando morresse, eu poderia ficar com ele.
Enquanto me espremia como uma contorcionista para vestir a
camisola de mamãe, tentando não deixar entrever um átomo de minha pele,
Chaquie zombou de mim, em tom de professora primária:
— Acho bom ficar de olho nessa celulite, Rachel. Na sua idade, você
não pode se dar ao luxo de fazer vista grossa.
Com o rosto ardendo de vergonha, subi na cama estreita.
— Fale com Durm't — sugeriu ela. — Ele vai dar um jeito em você.
— COMO DISSE? — Fiquei escandalizada! Que tipo de mulher era essa
que oferecia o marido para dar jeito na celulite de uma estranha?
— Durm't dirige um salão de beleza — esclareceu.
Isso explicava muita coisa. Inclusive a razão pela qual ela era tão bemtratada.
— Bem, digo que ele dirige — sorriu —, quando na verdade deveria
dizer que é dono. Nós somos donos. Como Durm't costuma dizer, "Celulite dá
um dinheirão".
Seu rosto tornou-se sombrio.
— Aquele cachorro — disse entre os dentes.
Chaquie não teve a menor vergonha de se despir. Exibiu-se na minha
frente da maneira mais ostensiva. Tentei não olhar, mas foi inevitável, porque ela
ficou de calcinha e sutiã muito mais tempo do que o necessário. E, embora me
irritasse admitir, estava em excelente forma. Um pouquinho flácida, mas uma
coisinha de nada. Estava apenas se exibindo, pensei, desejando que a morte e a
ruína se abatessem sobre ela e suas coxas esguias e bronzeadas.
Passou horas a fio removendo a maquiagem, toda uma sessão de
toques com as pontas dos dedos, pancadinhas, alisadelas e massagens suaves.
Nas raras ocasiões em que eu chegava a remover minha pintura, apenas atirava
uma bolota de creme de limpeza no rosto, como um ceramista atirando barro
úmido no prato giratório, e a esfregava em movimentos circulares com a palma
da mão, como se estivesse limpando uma vidraça. Em seguida, dava uma secada
rapidíssima com um lenço-de-papel.
Eu queria desesperadamente dormir. O dia de hoje já deu tudo que
tinha que dar, pensei, tudo, tudo, até o rabo. Gostaria de sair um pouco do ar,
por favor, agora mesmo, se possível. Mas Chaquie não me deixava dormir.
Continuou falando sem parar, mesmo quando tentei me esconder atrás do meu
livro de Raymond Carver. Que eu só trouxera porque fora um presente de Luke,
mas e daí? Eu podia estar mesmo a fim de lê-lo.
E, mesmo quando puxei as cobertas (de tecido áspero, com um cheiro
estranho) até a cabeça e fingi dormir, nem assim ela parou. Tentei ignorá-la,
fingindo ressonar profunda e regularmente, mas ela me chamava: "Rachel,
Rachel, está dormindo?" E, como eu não respondesse, sacudia meu ombro,
ríspida: "Rachel! Está DORMINDO?"
Era um horror. Eu estava quase aos prantos, de exaustão e frustração.
Sentia-me como uma fina superfície de vidro prestes a se estilhaçar sob uma
pressão insuportável. Se ela pelo menos CALASSE A BOCA!, eu pensava, a fúria
correndo como lava aos borbotões por minhas veias.
Estava com tanto ódio que não sei como não brilhava no escuro. Aliás,
sei, sim: não brilhava porque ela não apagava a porra da luz!
Então, quis uma droga. Ou vinte. Teria dado qualquer coisa por dois
punhados de Valium. Ou de soníferos. Ou de qualquer coisa. Aceitam-se todos
os donativos com gratidão.
Eu sentia um desejo de mulher grávida por substâncias químicas. Não
achava que desejar drogas sob condições tão insuportáveis fizesse de mim uma
toxicômana. Porque eu também desejava uma espingarda de cano serrado. E
isso não fazia de mim uma assassina. Pelo menos, não sob circunstâncias
normais.
Para abafar sua algaravia e o horror da cena, tentei pensar em alguma
coisa boa. Mas a única que me veio à cabeça foi Luke.

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