MELANCIA - MARIAN KEYES Cap.17
Laura apareceu, no domingo à tarde, e nos descontraímos bebendo chá,
comendo biscoitos de chocolate recheados (os de Michael) e brincando com Kate.
Brincar com Kate consistia, principalmente, em alimentá-la, botá-la para arrotar
e trocar suas fraldas.
Laura usava uma camiseta suja e manchada de tinta que supus pertencer ao
seu amante adolescente.
Ela parecia jovem, contente e feliz.
Tinha bons motivos.
Fizera sexo quatro vezes na noite anterior, histórias com as quais ela tentava
divertir-me, mas não parávamos de ser interrompidas por mamãe ou papai.
- Alguma notícia de James? - perguntou, tendo desistido da idéia de passar a
tarde falando de coisas picantes, após papai sair da sala pela vigésima vez.
Ele entrou, fez um cumprimento com a cabeça para Laura e começou a tirar as
almofadas do sofá e arredar as poltronas, resmungando alguma coisa sobre o fato
de não ter lido o Independent - se Helen o tivesse levado, ele a mataria.
E já que era ele quem pagava os jornais, então por que era o único que não
conseguia lê-los?
Voltou cerca de três minutos depois para ver se o fogo acendera direito e teve
uma grande discussão, principalmente consigo mesmo, sobre os méritos do carvão
fóssil.
("Aquece melhor, embora custe mais caro.")
Laura e eu apenas ficamos sentadas ali, enroscadas no sofá, Kate no colo de
Laura, e todas nós, até Kate, com um ar entediado, enquanto esperávamos que ele
terminasse sua diatribe e saísse.
Logo que saiu, chegou mamãe, em teoria para nos oferecer chá, mas na
prática para ver se eu tinha trazido escondido os bolos Jaffa. Perguntou pelo pai de
Laura.
- Geoff Prendergast é um homem maravilhoso - disse a Laura. - A quem você
terá puxado?
Depois, mamãe saiu, levando os bolos Jaffa.
Alguma notícia de James? - perguntou Laura novamente, enquanto a porta da
sala de estar tornava a se fechar.
Ele está fora - disse eu, sumariamente. - Mas vou telefonar- lhe amanhã.
Não queria falar sobre James.
Pelo menos, não naquele momento.
Estava cheia daquilo.
De esmiuçar repetidas vezes toda a história, tentando entendê-la,
preocupando-me com o que fazer.
Como dizem em Nova York: "Supere isso e, se não puder superar, supere o
vício de falar a respeito."
Sábio conselho.
Laura ficou na casa por mais de uma hora, antes de abordar o assunto Adam.
Fiquei pasma por ela ter demorado tanto.
Então, qual é a história entre você e o jovem Lochinvar*? - perguntou ela, de
modo totalmente casual, enquanto massageava as costas de Kate em movimentos
circulares.
Quem? - perguntei. Deliberadamente obtusa.
O lindo Adam - disse ela, com leve irritação.
Que é que tem ele? - perguntei.
Bem, antes de mais nada, ele é louco por você e, depois, é absolutamente
lindo. Se fosse uns cinco ou seis anos mais jovem, tal vez eu mesma me
interessasse.
Laura, ele não é louco por mim - protestei.
Claro que só disse isso para que Laura insistisse que Adam era de fato louco
por mim, para eu poder ter novamente aquela quente e deliciosa sensação em meu
estômago.
* Lochinvar: galã mencionado no poema Marmion, do autor escocês Sir Walter Scott (1771-1832).
Ele é louco por você - repetiu ela. - E, além do mais, você sabe disso muito
bem.
Mas, e daí? - perguntei. - Mesmo que ele seja louco por mim, se bem que não
temos nenhuma prova disso, o que acha que devo fazer?
Coma ele! - disse ela.
Aquela não tinha um pingo de vergonha.
Laura! Pelo amor de Deus, sou casada! - berrei para ela.
Ah, sim? - perguntou ela, com ar de superioridade. - E onde está seu marido?
Fiquei calada.
Claire - disse ela, afetuosa, após ficarmos sentadas em silêncio durante cinco
tensos minutos. - Tudo o que estou dizendo é que ele é um belo homem e parece
realmente gostar de você. Você passou por um período difícil e, mesmo se as coisas
finalmente tornarem a funcionar com James, talvez, enquanto isso, você devesse se
divertir um pouquinho.
O que está acontecendo por aqui? - perguntei. - Todo mundo me encoraja a ter
um relacionamento com Adam. Até minha própria mãe!
Sua mãe lhe disse para comer Adam? - gritou Laura, pasma.
Bem, não exatamente com essas palavras - disse eu. - Mas foi o que ela quis
dizer.
Então, o que está detendo você? - perguntou Laura, encantada. - Você tem a
bênção de sua mãe. É um excelente augúrio.
Pensei, por alguns momentos.
É - suspirei. - Acho que devia.
O quê?! - bradou Laura. - Está falando sério?
Pelo amor de Deus - ergui minha voz para ela. - Não é exatamente isso que
você me diz para fazer?
Eu sabia que isso aconteceria. Tinha certeza.
As pessoas estão sempre encorajando-se mutuamente a fazer coisas que
sabem que a outra pessoa não fará. E, depois, levam o maior choque quando a
pessoa realmente faz.
Eu mesma sou culpada disso.
Anos a fio, encorajei papai a comprar para ele uma calça jeans.
- Honestamente, papai, ficaria linda em você - dizia eu, mui tas vezes.
E papai respondia:
Ah, deixe disso, estou velho demais.
Não, papai, não está.
No dia em que papai apareceu usando uma Wrangler azul-marinho, dura como
uma tábua, com a bainha uns 20 centímetros dobrada para cima, sorrindo entre
tímido e orgulho, o choque quase me matou.
Sim, eu sei - disse Laura, parecendo um pouquinho aborrecida. - Mas é que
parece que isso combina muito pouco com você. Quero dizer, você é sempre tão
leal.
Laura, dificilmente se poderá achar que serei desleal com James se transar
com Adam, não é? - perguntei-lhe, amável.
Pude ver como ela estava chocada.
Embora eu tivesse um verniz de avançada, fora sempre Claire, a Constante.
Meu verniz de devassidão era fino como uma folha de papel, praticamente
transparente, na verdade.
Fiz o jogo do "vamos nessa" mais vezes do que desejo mencionar, mas meu
coração não tomava parte.
Sempre quis ser uma chata, instalada com um homem, mas fiz o maior esforço
possível para esconder isso, porque era considerada a coisa mais insultante que se
pode dizer de alguém - que ela só quer mesmo se instalar com um homem.
Poucas pessoas sabiam meu vergonhoso segredo.
- Claire, você gosta desse tal de Adam? - perguntou ela, preocupada.
Eu me divertia notando que Adam passara de "o lindo Adam" para "esse tal de
Adam" numa questão de minutos.
Claro que tenho uma paixonite por ele - disse-lhe eu, rindo do seu horror. - Ele
é delicioso, ou você não notou?
Bonito, concordo - disse ela, cautelosamente. - Mas o que você sabe a respeito
dele?
Sei que ele é legal e me faz sentir inteligente, bonita e desejável.
Claire, não se esqueça de que você está muito vulnerável neste momento.
Você está convalescendo.
É mesmo? - perguntei. Achei que minhas palavras soavam muito astutas.
De qualquer jeito - perguntei novamente, com grande curiosidade -, o que faz
você? Primeiro, me encoraja a ter um caso com ele e, depois, quando digo que sim,
começa a criticar meu comporta mento?
Desculpe, Claire - disse ela, com humildade. - É isso mes mo que estou
fazendo. Foi apenas porque pensei que podia ser bom para seu ego saber que ele
se sente atraído por você. Mas não pensei, nem por um segundo, que você tomaria
mesmo qualquer atitude. A tal ponto você é o tipo da mulher de um homem só, que
me choquei um pouco.
Laura, no momento sou mulher de homem nenhum - lembrei-lhe.
Eu sei, mas você ama tanto James que... Não sei... Não imaginei que
pensasse em qualquer outra pessoa.
As coisas mudam, as pessoas mudam - eu disse. - Não sei mais como me
sinto a respeito de James. Só sei que é maravilhoso estar com Adam.
Laura recompôs-se, de repente.
- Bem, se é assim, você não poderia escolher melhor pedaço de homem para
ter um caso. Ele é tão bonito. E tão simpático. Inteligente também - acrescentou,
como um segundo pensamento.
Isso era bom, vindo de Laura, que geralmente está mais preocupada com o
órgão entre as pernas do homem do que com a massa entre suas orelhas.
E é melhor começar a treinar - sorriu ela. - Não lhe prescreveram exercícios
para melhorar o tônus muscular? Ginástica pélvica ou coisa parecida. Sexo com
Adam não deve ser brincadeira.
Obrigada, Laura - disse eu, secamente. - Você me faz parecer um peixe na
rede.
Depois que Laura foi embora, não consegui sossegar. Não havia ninguém por
perto. Anna fizera outro dos seus números de desaparição. Helen, aparentemente,
estava na casa de Linda. Embora eu estivesse satisfeita com isso.
Sentia-me tão culpada com relação a Adam, que não creio que pudesse
encará-la.
Tinha a convicção de que Adam não era seu namorado.
Mas talvez fosse uma boa idéia tentar certificar-me disso, por via das dúvidas.
Mas sentia que não agüentaria enfrentar o fato de que ele era mesmo
namorado dela. Porque, o que pensaria eu dele, se fosse verdade?
Que era algum tipo de maluco que se divertia destruindo lares, colocando uma
irmã contra a outra e separando famílias?
Se Adam fosse namorado de Helen e ela descobrisse que eu me encontrava
com ele, nós dois combinando tudo, e não apenas uma vez, mas duas, então o
maior massacre da história da Irlanda pareceria uma manhã de Natal, em
comparação com o banho de sangue que sem dúvida se seguiria.
Acaso eu me sentia desleal com Helen por me encontrar com Adam?
Sim, claro que sim.
Mas não muito.
Se Adam fosse o namorado de Helen, então eu recuaria imediatamente e não
teria mais nada a ver com ele.
Esse detalhe era fácil de decidir.
Mas, e se Adam não fosse o namorado de Helen, e esta o desejasse?
Bem, se Adam a desejasse também, então se aplicaria o mesmo princípio de
antes: eu recuaria imediatamente e nada mais teria a ver com ele.
Mas, se Helen desejasse Adam e Adam não desejasse Helen e se, delicioso
pensamento, Adam me desejasse, então, como seria?
Essa era dura.
Eu amava Helen.
Sabe Deus o motivo, mas amava.
E não queria fazer nada que a desgostasse.
Não, realmente não queria.
E não apenas porque eu tinha medo dela.
A melhor coisa que eu podia fazer era conversar com ele a respeito de tudo
isso.
Simplesmente perguntar-lhe, de forma direta, o que havia entre ele e Helen.
E, se houvesse uma história, passar então para uma nova fase de
preocupação.
A conclusão final foi a de que, se eu não me arriscasse, nunca saberia.
Jamais me imaginara dizendo isso, mas a vida realmente é curta demais.
Devemos agarrar nossas oportunidades com as duas mãos.
E era isso que eu faria com Adam.
É isso mesmo, você me ouviu direito, o duplo sentido está aí - vou agarrá-lo
com as duas mãos.
- Meu Deus, Claire - mamãe reclamou, quando mudei mais uma vez o canal da
televisão. - O que há de errado com você? Não pode ficar sentada quieta? Parece
até que está com uma pulga na calcinha.
- Desculpe, mamãe.
Exatamente naquele momento, o telefone tocou.
Meu Deus, Claire, meu pé! - ganiu papai, como um cachorro com a cauda
presa numa porta, quando corri para atender e esmaguei vários dos seus
metatarsos.
Alô - arquejei para dentro do fone.
Alô, seu pai está aí? - perguntou uma voz arrastada do outro lado do fio.
- Papai - chamei. - Papaaai! É a tia Julia, para você. Droga, pensei.
Isso significava que papai ficaria no telefone durante horas.
Era impossível tirar tia Julia do telefone, quando ela ligava bêbada.
Geralmente, ela ligava para se desculpar por ter feito algo como trapacear num
jogo de beisebol - um jogo que ocorrera há mais ou menos uns 45 anos.
Por que estaria eu querendo tanto o telefone livre, imaginei, desviando-me
lepidamente de papai, que passou por mim manquejando, mal-humorado, a caminho
do fone?
Alguém dissera que me telefonaria?
Estaria eu esperando algum telefonema?
Não, definitivamente não.
Mas um cálido brilho de esperança dentro de mim pensava que talvez, apenas
talvez, Adam telefonasse.
Ele não dissera que o faria.
Mas eu sentia que talvez o fizesse.
Sentei-me no vestíbulo para bisbilhotar sem a menor vergonha a conversa de
papai com tia Julia.
Em geral, era uma escuta interessante, embora levemente bizarra. Quanto
tempo demoraria aquela conversinha?
- Agora, Julia, escute o que digo - falou papai, agitado.
Ah, meu Deus, deve ter sido um jogo muito importante, para ele ficar tão
perturbado.
- Molhe uma toalha e jogue em cima imediatamente! - ele rugiu ao telefone.
Ah, Deus do céu, pensei, ao perceber que tia Julia estava apenas tentando
destruir sua casa com um incêndio e não telefonava para uma longa conversa à toa,
cheia de remorso e desculpas.
- Não, debaixo da torneira, Julia, debaixo da torneira! - berrava papai.
Com que intuito teria ele proposto molhar a toalha? Melhor não pensar a
respeito.
- Agora, Julia, vou desligar o telefone, e você vai fazer a mesma coisa - disse
papai, lenta e cuidadosamente, como se falasse com uma criança de quatro anos. E
vai discar 999 e chamar o corpo de bombeiros. E depois me telefonará novamente, e
me dirá o que fez, e se eles já estão a caminho.
Bateu violentamente o telefone e se apoiou na parede.
-Meu Deus - disse, com um aspecto exausto.
-O que ela fez agora? - perguntou mamãe, que aparecera no vestíbulo.
De alguma forma, incendiou uma das bocas do fogão e o fogo se espalhou -
suspirou papai. - Meu Deus, será que isso vai terminar algum dia?
O telefone tocou.
-Deve ser ela ligando novamente - disse papai, enquanto mamãe atendia.
-Alô - disse mamãe.
E então seu rosto mudou.
- Sim, ela está aqui. Quem quer falar, por favor? É Adam, para você - disse ela,
entregando-me o receptor com o rosto sem nenhuma expressão.
- Ah - disse eu, pegando o receptor de sua mão, cheia de alívio. Era isso que
eu estivera esperando a noite inteira, sem ter cons ciência.
-Alô - disse eu, encantada, mas tentando esconder isso, na frente de mamãe e
papai.
-Claire - disse ele, com sua linda voz. - Como vai você?
-Estou ótima - disse eu, um tanto desajeitada. Mamãe e papai ainda estavam
em pé no vestíbulo, ambos olhando para mim.
-Sumam! - sussurrei para eles, agitando meu braço livre.
-Estamos diante de uma maldita emergência! - bradou papai. - Saia desse
telefone!
-Dentro de um minuto - disse-lhe eu.
- Mas só um minuto - respondeu ele, ameaçador. E então os dois saíram.
-Desculpe - disse eu a Adam, enquanto mamãe e papai volta vam a
contragosto para a sala de estar. - Uma pequena crise em família.
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