Assim que tive alta do hospital, papai disse que uma mulher chamada
Nola tinha ligado para mim. A loura, linda e sofisticada Nola, que fora ao
Claustro para a reunião dos NA. Obrigada, Deus, pensei, trêmula, com sincero
alívio. Eu tinha que começar a freqüentar as reuniões dos meus grupos de apoio,
mas não queria ir sozinha.
Liguei de volta para ela e, morta de vergonha, contei-lhe sobre minha
recaída. Ela não me deu uma bronca. Exatamente como nas duas vezes em que
eu a vira no Claustro, foi muito humana comigo, embora um pouco doidinha.
Logo descobri que Nola era sempre muito humana, embora um pouco doidinha.
Ela disse que talvez eu precisasse ter uma recaída para descobrir que
não queria mais recair. Era um pouco complicado, mas, como não me colocava
num papel ridículo, aceitei a idéia de bom grado.
— Se perdoe, mas não se esqueça — exortou ela.
Levou-me a uma reunião dos NA no salão paroquial de uma igreja. Eu
estava insegura e assustadíssima. Era minha primeira incursão no mundo
exterior desde aquele dia com Tiernan. E eu estava apavorada com a hipótese de
esbarrar com Chris, pois a lembrança da noite humilhante passada com ele
ainda ardia. Felizmente, não o vi em nenhuma parte.
A reunião foi muito diferente das que eu freqüentara no Claustro.
Havia muito mais gente, todos simpáticos e cordiais. E, em lugar de uma única
pessoa descrevendo seu passado de drogas, várias pessoas falaram sobre o que
estava acontecendo em sua vida quotidiana atual. Como estavam conseguindo
lidar com seus empregos, namorados e mães sem usar drogas. E estavam
conseguindo. Isso me deu uma grande esperança. Às vezes, quando as pessoas
falavam, eu tinha a sensação de que estavam me descrevendo. Sabia exatamente
o que queriam dizer quando falavam coisas como "Eu comparava meu interior
com o exterior de todo mundo". Senti-me totalmente entrosada e à vontade, e
fiquei surpresa por constatar que isso me alegrou.
Fora o fato de que a maluca da Francie tinha razão sobre os caras
gostosos. Havia um monte deles.
Que maravilha, pensei. Um desses caras jovens e bonitos vai me
ajudar a superar o trauma de minha noite com Chris.
— Nem pense nisso — disse Nola, com um sorriso carinhoso, quando
me pegou olhando de soslaio para um deles.
Depois da reunião, fomos para o café que ficava ao lado da igreja.
— Que é que você pretendia, comendo todos os caras com os olhos? —
me interpelou.
Com um alívio há muito desejado, desabafei sobre minha horrível
experiência com Chris. A transa medonha e inconclusiva, a suspeita de que ele
sequer se sentia atraído por mim, o medo de que se sentisse atraído por Helen, a
humilhação, a sensação de ser uma errada.
— E acho que o melhor a fazer é voltar à ativa — concluí, esperançosa.
— Ah, não — disse Nola, com uma brandura que, por um momento,
chegou a me enganar. — Por que você haveria de querer fazer isso? Começar a
namorar logo no início do processo de recuperação é um grande erro. Você só vai
cavar sua própria infelicidade com isso.
Eu discordava em gênero, número e grau.
— Você é jovem e imatura demais para fazer as escolhas certas! —
disse ela, como se isso fosse um elogio.
— Tenho vinte e sete anos — protestei, mal-humorada.
— Que sorte a sua, ser tão jovem e bonita, não? — Ela abriu um
sorriso. Não tinha compreendido o que eu quisera dizer. Aliás, tinha fingido não
compreender, como fui apurar tempos depois.
— Mesmo assim — acrescentou, jovial —, deixe os rapazes de lado por
algum tempo. Você acabou de sair de um centro de reabilitação.
Isso me deixou muito frustrada, mas ela era tão boa pessoa que não
tive coragem de reclamar.
—Quer saber de uma coisa? — tagarelou. — Você vai morrer de rir ao
saber disso, mas o fato é que um monte de gente comete o equívoco de achar
que os NA são uma espécie de agência 'matrimonial.
Francie, sua loroteira!
— Não é hilário? Olha só o desastre que foi sua saída com um
toxicômano que tinha acabado de parar. — Nola olhou para mim, carinhosa. —
Fez com que você tivesse uma recaída! Ah, você não quer que isso aconteça de
novo, quer? Você tem muito amor-próprio para isso.
Não tinha, mas simpatizava tanto com ela que não consegui discordar.
— Aquele episódio com Chris foi horrível do princípio ao fim — fui
forçada a admitir.
— Claro que foi! — exclamou Nola, como se alguém estivesse tentando
provar o contrário. — Mas esquece ele.
Me ocorreu que, em qualquer conversa que aconteça entre duas
mulheres, seja qual for o contexto, em algum ponto essas palavras aparecem.
— Acho que o que dói mais é o fato de ser rejeitada por alguém que eu
tinha um pouco na conta de ídolo — esforcei-me por explicar. — Ele vivia me
dando conselhos no Claustro. Era tão lúcido.
— Não era nem um pouco lúcido — disse Nola, com um ar inocente de
surpresa. — Arrotava um monte de merda, isso sim.
Fiquei chocada. Achava que ela era meiga demais para dizer uma coisa
daquelas.
— Que arrotava, arrotava — disse ela, com um risinho. — Um monte de
merda. Não estou dizendo que a culpa seja do pobre coitado, mas o fato é que ele
não se comportou com a menor lucidez, apesar de ficar enchendo sua cabeça de
conselhos. Falar é fácil, mas olhe para o que as pessoas fazem, não para o que
dizem.
— Mas ele foi muito bom comigo no hospício — me senti obrigada a
protestar.
— Aposto como foi, mesmo — disse Nola, compreensiva. Principalmente
quando você estava mal?
— É — concordei, me perguntando como ela sabia.
— Muitos toxicômanos são altamente manipuladores — disse Nola,
cheia de compaixão. — Têm o impulso de pegar os outros para Judas,
justamente quando estão, eles próprios, no auge da vulnerabilidade. Aposto
como você não foi a única mulher com quem o pobre-diabo foi bom. — Disse
tudo isso com um tom de voz tão manso e distraído, que custei um minuto a
compreender o quanto estava sendo mordaz. E tinha carradas de razão, me dei
conta, ao ser assaltada pela indesejável lembrança da ocasião em que Chris
enxugara as lágrimas de Misty com os polegares, como fizera comigo pouco
tempo antes. A maneira como olhara para mim, certificando-se de que eu vira.
Isso fora algum tipo de jogo, era inegável. Hesitante, contei a Nola sobre o fato.
— Viu só? — disse ela, triunfante. — Trata de esquecer ele. Pelo jeito, o
coitado do rapaz não está nada bem. E é tão inseguro — que Deus o proteja —,
que teve que seduzir você só para provar a si mesmo que você se sente atraída
por ele.
Então me lembrei do passeio que ele me levara para dar pelo jardim do
Claustro. As coisas provocantes que dissera. Fora tudo de caso pensado,
compreendi, chocada. Dissera aquelas coisas de propósito. Aquele calhorda
manipulador.
Em um segundo, eu estava botando fumaça pelo nariz. E pensar que
me culpara por aquela trepada de merda! Que piada. Ele estava preocupado
demais consigo mesmo para que minha participação no evento tivesse qualquer
importância.
— Aquele escroto! — gritei. — Brincando comigo, fazendo todo mundo
ficar a fim dele só porque se sente um zero à esquerda, me enganando...
— Calma, garota, devagar com o andor — interrompeu Nola, como se
fosse a coisa mais simples do mundo. — A culpa não é dele.
— Falar é fácil para você — disse eu, sem fôlego, sentindo meu ódio
justificado.
— Você não faria uma forcinha para lembrar que ele não é diferente de
você em nada? — sugeriu ela, afável. — Apenas um toxicômano que acabou de
começar uma vida nova.
Isso furou o meu balão.
— Embora estivesse enchendo a sua cabeça com aquelas basbaquices
sobre comportamento, é óbvio que ele próprio não faz a menor idéia de como se
comportar. — Sorriu para mim, carinhosa.
Se tivesse um pingo de juízo, nunca teria dormido com você. Sem
querer ofender, é claro — acrescentou, simpática.
Murmurei que não tinha ofendido.
— Agora, vamos lá, fica calma — me exortou. — Respira fundo boa
mulher.
Quase fiquei irritada ao constatar que estava mesmo me acalmando.
— Perdoe a si mesma — disse Nola, no momento em que eu me dava
conta de que tinha me perdoado. — Você não teve culpa por ele te rejeitar. E,
aproveitando a oportunidade, perdoe ele, também.
Para minha grande surpresa, o ódio que eu estava sentindo de Chris e
o sofrimento que ele me infligira simplesmente se evaporaram. Tudo havia
mudado, e passei a vê-lo como um pobre coitado infeliz, mal se agüentando nas
pernas, como eu. Não devia ter dormido comigo, mas eu também não devia ter
dormido com ele. Eu não era nenhuma vítima. Tomara a decisão de sair com ele,
embora tivesse sido advertida a não fazê-lo. E, se tudo tinha dado numa merda
federal, a culpa, em parte, fora minha.
Gostei dessa sensação. De responsabilidade, autocontrole.
— E, de mais a mais — salientou Nola —, você perdeu o tesão por ele
tanto quanto, pelo visto, ele por você.
Em vez de me sentir vitoriosa, me dei conta de que estava pensando
em Luke.
— Que foi que houve com você agora, garota? — perguntou Nola.
— Como assim? — perguntei.
— Você está com um ar um pouco... não sei... aborrecido. — Meus
olhos estavam quase saltando das órbitas de ódio, mas Nola parecia incapaz de
reconhecer qualquer emoção mais negativa do que aborrecimento.
— Eu tinha um namorado — disse eu, sem sentir, meus olhos se
enchendo de lágrimas indesejadas. — Quer dizer, um namorado de verdade, não
um meia-foda como Chris.
Fumegando de ódio, me engasgando de cólera, falei a ela de Luke, que
completo filho-da-puta ele fora comigo, como tinha me magoado e humilhado
com as coisas terríveis que dissera no dia em que fora ao Claustro.
Nola a tudo ouviu, compreensiva.
— E você ainda ama Luke — disse ela, quando terminei.
— Eu, amar Luke? — indaguei, olhando para ela como se tivesse
perdido a razão. — Tenho ódio de morte dele!
— Tanto assim? — Ela me olhou, penalizada.
— Não, é sério — insisti. — Quero ver Luke Costello pelas costas.
— Apesar de ele ter sido boníssimo com você, viajando de tão longe
para te ajudar a ver o quanto a sua dependência era grave? — Ela ficou
espantada. — Acho que ele deve ser um amor de pessoa.
— Ah, não começa — disse eu, azeda. — Tenho ódio dele, nunca vou
perdoar o que ele fez, e espero não tornar a pôr os olhos nele até o último dia da
minha vida. Essa é uma parte do meu passado que está morta e enterrada.
— Às vezes, quando está escrito, as pessoas do nosso passado voltam
— disse ela, como se com isso pretendesse me consolar.
— “Quando está escrito" — imitei-a. — Bom, eu não quero ele de volta!
— Você está muito mal-humorada. — Ela sorriu, benevolente.
— Estou falando sério, não quero ele de volta — insisti, diante de seu
rosto afetuoso. — Mas nunca mais vou conhecer alguém — gemi, esmagada por
um súbito desespero. — Minha vida acabou.
De repente, Nola se levantou.
— Anda logo, termina de tomar isso — ordenou, apontando meu café e
atirando algumas libras sobre a mesa. — E vem comigo!
— Aonde...?
— Vem comigo, sem fazer perguntas — disse ela, ofegante, excitada.
Saiu do café a passos largos para a rua e, manuseando seu barulhento
molho de chaves, aproximou-se de um carro esporte prateado.
— Entra aí, boa mulher — me ordenou. Temerosa, obedeci.
— Aonde você está indo? — perguntei, enquanto ela corria feito uma
louca pelas ruas.
— Mostrar uma coisa a você — murmurou, distraída. — Você vai
gostar.
E não deu mais uma palavra até frear o carro, cantando pneu, diante
de uma casa de tijolos vermelhos.
— Sai daí — disse ela. Com um tom amável, mas firme.
Eu já não estava achando que Nola fosse aquela tetéia mansinha que
aparentava ser.
Saí do carro, e ela disparou pelo caminho de pedras, abrindo a porta
da casa e fazendo um gesto para que eu entrasse.
— Harry — chamou. — Harry!
Achei que Harry devia ser seu cachorro, porque nenhum ser humano
irlandês tem um nome desses.
Mas, como não apareceu nenhum cachorro trotando, me ocorreu que
Harry era o gatão de três metros e meio de altura, bronzeado e louro que surgiu
no vestíbulo, em resposta ao seu chamado.
— Este é Harry — disse ela. — Meu marido. Eu o conheci quando
estava abstinente há três anos, e tinha mais oito do que você tem agora. Ele é
louquinho por mim, não é? — Virou-se para ele.
Ele fez que sim com a cabeça.
— Louquinho por ela — disse para mim, em tom confidencial.
— Nós temos um relacionamento fabuloso. — Ela abriu um sorriso
radiante para mim. — Porque eu tinha aprendido a conviver comigo mesma,
antes de conhecê-lo. Fui uma pobre coitada extrema mente infeliz e idiota, até
aprender a fazer isso. Estou sendo clara? — perguntou, a perplexidade
subitamente estampada no rosto.
— Como água — murmurei.
— Que bom. — Ela sorriu, eufórica. — Que ótimo! Às vezes, parece que
eu confundo as pessoas. Vou levar você para casa.
Durante todo o ano seguinte, sempre que eu acordava de madrugada
achando que morreria sem jamais sentir os carinhos de um homem outra vez —
e tais ocasiões foram numerosas —, pensava na "Operação Harry" e o pânico
cedia. Assim que tivesse completado um ano de abstinência física e química,
teria o direito de exigir meu Harry-brinde.
No dia seguinte, Nola me ligou e me levou a uma reunião. Dessa vez,
no salão paroquial de outra igreja, com outras pessoas, mas basicamente com o
mesmo formato. "Não deixe de vir sempre, que as coisas vão melhorar", foi o que
todos disseram. No dia seguinte, Nola me levou a mais uma reunião. E no outro
dia também.
— Por que você é tão boa comigo? — perguntei, um pouco inquieta.
— E por que não haveria de ser? — exclamou ela. — Você não e um
amor de pessoa?
— Mas por quê? — insisti.
— Ah — ela suspirou, com ar nostálgico. — Quando te vi no
Claustro, com aquela carinha enfezada, você me fez lembrar de mim mesma. E
isso me fez voltar sete anos no tempo, até a época daquela infelicidade horrível.
A confusão mental, o nervosismo pavoroso! No momento em que pus os olhos
em você, pensei: "Meu Deus, essa poderia ser eu."
Me enfureci. O topete daquela mocréia!
— Você é exatamente como eu era — exclamou ela, afetuosa. — Não
existe nenhuma diferença entre nós duas.
Isso me abrandou. Eu queria ser como ela.
— Eu não estaria livre das drogas hoje, se não tivesse contado com a
ajuda de boas pessoas na ocasião — disse ela. — Agora, é a minha vez. E,
quando você estiver um pouco melhor, vai ajudar outras pessoas.
Fiquei a um tempo comovida e irritada.
— Você não tem que ir trabalhar? — perguntei a ela no dia seguinte,
quando chegou para me levar a mais uma reunião.
— Sou minha própria chefe — disse ela, para me tranqüilizar. — Não se
preocupe comigo.
— O que você faz? — perguntei, curiosa.
Fiquei sabendo que ela dirigia uma agência de modelos, uma das mais
bem-sucedidas da Irlanda. E, no passado, também fora uma modelo. Isso me
animou. Adorei saber que ela podia ser uma toxicômana, e ainda assim ter uma
carreira glamourosa e bem-sucedida. Isso melhorou a leve sensação residual que
eu ainda tinha de pertencer a uma escória de fracassados.
— Há um monte de nós, toxicômanos em recuperação, com carreiras
extremamente bem-sucedidas — disse ela. — Quando você estiver um pouco
melhor, provavelmente vai ter uma, também.
Achei difícil de acreditar nisso.
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