quarta-feira, 6 de julho de 2011

Férias!! - MARIAN KEYES Cap.66

Acordei no hospital.
Só que não sabia que era um hospital, quando recobrei os sentidos.
Lutei para sair do sono, como se nadasse em direção à superfície da consciência.
Eu podia estar em qualquer lugar. Na cama de qualquer estranho. Até abrir os
olhos, eu podia estar em qualquer um dos milhões de camas espalhados por
todo o globo terrestre.
Quando vi o soro preso ao meu braço e senti o cheiro estranho de
desinfetante, compreendi onde estava. Não fazia a menor idéia d< como fora
parar lá. Ou o que acontecera comigo.
Mas sentia o mais violento bode que já sentira em toda a minta vida.
Como se me encontrasse exatamente no canto mais desolado do universo, diante
de um abismo. Vazio ao meu redor, vazio na: profundezas de mim mesma. Tudo
tão horrivelmente familiar.
Há quase dois meses que não me sentia assim. Já tinha me esquecido
como era verdadeiramente insuportável. E é claro que a primeira vontade que me
bateu violenta, para rebater o bode, foi a de me drogar mais ainda.
O que terá acontecido?, me perguntei.
Tinha uma vaga lembrança de estar cambaleando pelas ruas
iluminadas à noite, com meu novo melhor amigo, Tiernan. E de ter ido a outros
bares, bebido mais, cheirado mais. De ter tomado um punhado de comprimidos
de temazepam, quando uma leve paranóia deu seus primeiros sinais. Lembravame
de ter dançado num outro bar, e de ter me achado a melhor dançarina do
mundo. Meu Deus do Céu, que vergonha mortal.
Em seguida, fui com Tiernan a outro bar, onde compramos mais
cocaína. Depois, a mais outro bar. E depois talvez a mais outro — e tinha a vaga
lembrança, mas não a certeza. Depois disso, fomos com três — ou teriam sido
quatro? — amigos seus para o apartamento de alguém. Onde tomamos dois Es
cada um. Além de um flash do tipo cena de boate, não me lembrava de
absolutamente mais nada.
Ouvi alguém chorando convulsamente. Minha mãe. Abri os olhos
mesmo contra a minha vontade, e minha sensação de estranheza aumentou
ainda mais, quando vi que era papai quem estava aos prantos.
— Não chora — murmurei. — Não vou fazer isso de novo.
— Você já disse isso antes — soluçou ele, o rosto escondido nas mãos.
— Prometo — disse eu, com esforço. — Dessa vez vai ser diferente.
Pelo que constava, eu fora atropelada. Segundo a motorista, eu correra
para a frente do seu carro, e ela não tivera como desviá-lo. O relatório policial me
descreveu como estando "enlouquecida". O pessoal com quem eu estava fugiu,
me deixando caída no meio da rua. Disseram que eu tinha tirado a sorte grande
— além de uma grande equimose na coxa, estava em perfeitas condições físicas.
Salvo pelo fato de estar enlouquecendo, é claro.
Desejava, ansiava, sentia uma vontade imperiosa de estar morta. Mais
do que das outras vezes em que desejara o mesmo.
O desespero me esmagava sob seu peso como um bloco de granito. Um
coquetel depressivo cujos ingredientes eram as coisas que minha mãe me
dissera aos gritos, a vergonha pela recaída e a rejeição de Chris.
E eu lá, deitada num leito de hospital, as lágrimas escorrendo pelo
meu rosto para o travesseiro, sentindo um ódio surdo, profundo, brutal de mim
mesma. Eu era um retumbante fracasso, a maior perdedora da Criação.
Ninguém me amava. Fora expulsa de casa por ser burra e imprestável. Não
podia sequer voltar para lá e, para ser franca, não culpava minha mãe. Porque,
além dos meus outros defeitos horríveis, eu tivera uma recaída.
Era isso que estava me matando. O fato de ter estragado tudo,
aniquilado totalmente minha chance de ter uma vida feliz, livre de drogas. Sentia
desprezo por mim mesma, devido a todo o dinheiro que papai a custo soltara
para minha internação no Claustro, por não ter adiantado nada. Eu tinha
decepcionado todo mundo — Josephine, os outros internos, meus pais, minha
família, até a mim mesma. Estava torturada de vergonha e sentimento de culpa.
Queria desaparecer da face da Terra, morrer e me dissolver.
Tratei de dormir, agradecida por sair do verdadeiro inferno em que
minha vida se transformara. Quando acordei, Helen e Anna estavam sentadas à
minha cabeceira, comendo as uvas que alguém trouxera para mim.
— Porras de sementes — reclamou Helen, cuspindo alguma coisa na
palma da mão. — Será que nunca ouviram falar em uvas sem sementes? Bemvindos
ao século XX! Ah, você acordou.
Assenti com a cabeça, deprimida demais para falar.
— Meu Deus, você está mesmo mal — comentou ela, alegre. — Vir
parar no hospital de novo por usar drogas. Da próxima vez, você pode morrer.
— Pára com isso. — Anna lhe deu uma cotovelada.
— Bom, não precisa se preocupar — consegui dizer, com grande
sacrifício. — Não vai ser mais da sua conta. Assim que eu estiver bem o bastante
para sair daqui, vou para longe, muito longe, onde você nunca mais vai ter que
me ver de novo.
Meu plano era sumir do mapa. Me castigar com uma vida vazia e
solitária, longe da minha família e amigos. Erraria pela Terra, sem ser bem-vinda
em parte alguma, porque não merecia nenhuma outra forma de existência.
— Olha só a rainha do dramalhão — zombou Helen.
— Pára com isso — gemeu Anna, aflita.
— Você não entende — disse eu a Helen, desolada com minha condição
de quase órfã. — Mamãe me mandou embora para nunca mais voltar. Ela me
odeia, sempre me odiou.
— Quem, mamãe? — tornou Helen, surpresa.
— É, ela sempre faz com que eu me sinta uma inútil — consegui dizer,
embora a dor quase tenha me matado.
As duas fizeram uma expressão divertida e debochada.
— Você? — escarneceu Helen. — Mas ela vive me dizendo que eu não
tenho jeito! Por levar pau nas provas duas vezes e ter um emprego de merda. Dia
sim, dia não ela me manda embora para não voltar nunca mais. A essa altura do
campeonato, fico até preocupada quando não manda. É verdade, juro —
balançou a cabeça diante de meu rosto incrédulo.
— Não, sou eu quem ela realmente odeia — disse Anna. Se não a
conhecesse, pensaria que estava se gabando. — E ela não suporta Shane. Vive
perguntando por que ele não anda no carro da companhia.
— E por que ele não anda no carro da companhia? — perguntou Helen.
— Só por curiosidade.
— Porque ele não trabalha para nenhuma companhia, sua burra está
desempregado! — disse Anna, revirando os olhos.
Senti meu astral levantar um ou dois átomos. Comecei a pensar, um
tanto hesitante, que talvez ainda não cometesse suicídio ou me alistasse na
Marinha. Que talvez nem tudo estivesse perdido.
— Ela trata mesmo vocês mal? — murmurei. — Ou vocês só estão
tentando ser boazinhas comigo?
— Não banco a boazinha — disse Helen, em tom de desdém. — E ela é
horrível com a gente, sim.
Foi maravilhoso sentir o peso terrível daquela depressão apocalíptica
saindo de cima de mim, ainda que por um momento.
Helen desajeitadamente tocou minha mão, e fiquei tão comovida com
essa sua tentativa de demonstrar afeto, que meus olhos se encheram de
lágrimas pela octogésima nona vez aquele dia.
— Ela é mãe — disse Anna, a lúcida. — Acha que, se nos esculhambar,
vamos aprender a ser gente. Não é só com você. Ela faz isso com todas nós!
— Menos Margaret — dissemos as três em uníssono.
Eu estava me sentindo melhor o bastante para chamar Margaret de
santinha umas vinte ou trinta vezes.
— Santinha — todas concordamos. — É, santinha. A grande santinha.
— Quer dizer que você ficou com o eu no chão só porque mamãe te
disse para ir embora e nunca mais voltar? — Helen se esforçava para
compreender.
— Acho que sim — dei de ombros, constrangida com o ar infantil dessa
constatação.
— Sua palerma burra — disse Helen, em tom carinhoso. — Tem que
endurecer, você é mole demais. Não pode sair por aí e quase se matar toda vez
que mamãe — ou quem quer que seja — berrar com você, assim você não dura
cinco minutos.
Fora essa a advertência que Josephine me fizera. A ficha caiu, e de
repente compreendi a que ela tinha se referido ao dizer que havia um conflito
mal resolvido entre mim e mamãe. E eu balançara a cabeça, concordando com
ela, mas, no momento em que o referido conflito pôs suas unhinhas de fora,
esqueci seu conselho.
Levara pau na minha primeira prova no mundo real.
Mas ficaria esperta, da próxima vez.
— Quando ela ficar puta com você de novo, não dá recibo. — Helen leu
meus pensamentos, abrindo um largo sorriso para me encorajar. — E daí, se ela
te disser que você é uma merda? Você tem que acreditar em si mesma.
— De mais a mais, ela nem mesmo diz essas coisas a sério —
intrometeu-se Anna.
— Só para você — disse-lhe Helen.
Senti a nuvem negra e pestilenta de infelicidade sair de cima de mim.
Descobrir que minhas irmãs se sentiam tão perseguidas por mamãe quanto eu
foi uma revelação maravilhosa. E também que a única diferença entre nós eram
nossas atitudes. Que elas encaravam aquele antagonismo com humor, enquanto
eu me magoara demais com ele. E era melhor dar um basta nisso.
— Está se sentindo melhor agora em relação a mamãe? — perguntou
Anna, carinhosa. — Ela só perdeu a cabeça porque estava com medo de que você
não voltasse para casa. Ela ficou histérica aquela noite, achando que você
poderia se drogar com o tal de Chris. As pessoas dizem coisas que não querem
dizer, quando estão preocupadas. — Acrescentou, encabulada: — Até eu fiquei
preocupada.
— Abstinente e serena, essa é você, não é, Anna? — Helen se
espreguiçou, bocejando. — Quanto tempo faz que não usa uma droga?
— Não é da sua conta — disse Anna, altiva. Ato contínuo, as duas
começaram a bater boca, mas mal ouvi o que diziam, subitamente assaltada pela
vergonha e o sentimento de culpa. Uma vergonha e um sentimento de culpa
diferentes dos que tinham me torturado desde que eu recobrara os sentidos.
Vergonha e sentimento de culpa pelo que fizera com mamãe. Claro que ela tinha
ficado preocupada, compreendi, com chocante clareza. Eu era uma toxicômana,
aquela fora minha primeira incursão no mundo exterior, ao lado de uma pessoa
que era uma notória má companhia, e não voltara para casa. Se ela pensara no
pior, tinha todo o direito e mais algum. Eu tinha merecido levar os berros que
levara.
Ela me acusara de ser egoísta. E estava coberta de razão. Eu realmente
fora egoísta. Estava tão obcecada comigo e com Chris, que não enxerguei o
quanto ela se sentira assustada por minha causa. Resolvi pedir-lhe perdão com
toda a humildade, assim que estivesse com ela.
Eu já estava começando a me sentir ótima, quando me lembrei que não
era só minha briga com mamãe que estava me pesando na consciência.
— Sou um fracasso — murmurei para Helen e Anna. — Usei drogas.
— E daí? — exclamaram elas.
E daí?, pensei, indignada. Obviamente, elas não faziam idéia da
gravidade da situação.
— Basta não usar de novo. — Helen deu de ombros. — É como estar de
dieta. Só porque você perde a cabeça um dia e come sete barras de chocolate,
isso não quer dizer que não possa recomeçar a dieta no dia seguinte. Tanto mais
motivo tem para recomeçar, aliás.
— Quem dera que fosse simples assim — disse eu, triste.
— É simples assim, porra — disse Helen, com ar irritado. — Pára de
sentir pena de si mesma.
— Vai à merda — murmurei.
— Vai você — devolveu ela, imperturbável.
Ela fazia a coisa parecer tão razoável. Como se eu apenas tivesse feito
uma tempestade em copo d'água. E talvez tivesse mesmo feito uma tempestade
em copo d'água, pensei, esperançosa. Seria maravilhoso descobrir que tudo
ainda podia ser salvo.
Mamãe chegou ao quarto depois de Helen e Anna saírem. Recostei-me
na cama, nervosa e ansiosa para me perdoar, mas ela foi mais rápida do que eu:
— Perdão — pediu, o arrependimento estampado no rosto.
— Não, eu é que peço perdão — insisti, com um nó na garganta.
— Você tem razão. Fui egoísta, não tive a menor consideração com você
e estou morta de vergonha por ter te causado tanta preocupação. Mas nunca
mais vou fazer isso de novo, juro.
Ela se aproximou e sentou-se na minha cama.
— Me perdoa pelas coisas horríveis que eu disse. — Abaixou a cabeça.
— Eu me excedi. Mas é o meu jeito, não tive intenção de causar nenhum mal. É
só porque quero o melhor para você...
— Me perdoa por ser uma filha tão ruim — pedi, me sentindo
profundamente envergonhada.
— Não é! — exclamou ela. — Não é, de jeito nenhum. Você sempre foi
um doce, a mais afetuosa, a melhor das cinco. Minha filhinha — gemeu,
atirando-se nos meus braços. — Minha menininha.
Ao dizer isso, uma torrente de lágrimas jorrou de meus olhos. Retribuí
seu abraço, soluçando, enquanto ela acariciava meus cabelos e me embalava.
— Me perdoa pelo ovo de Páscoa de Margaret — consegui dizer, algum
tempo depois.
— Não se perdoe! — exclamou mamãe, às lágrimas. — Tive vontade de
cortar fora minha língua. No minuto em que as palavras saíram...
— E me perdoa pela vergonha que fiz você passar por eu ser uma
toxicômana — pedi, humilde.
— Você não tem que se perdoar por isso — disse ela, enxugando
minhas lágrimas com a manga do cardigã. — É claro que podia ser mil vezes
pior. Hilda Shaw está esperando um bebê. Outro. E ainda não é casada. E,
espere só até ouvir isso. — De repente, ela começou a cochichar, embora
estivéssemos só as duas no quarto. — Angela Kilfeather botou na cabeça que é
lésbica...
Imagina só! Angela Kilfeather, cujos cachos louros eu tanto invejava
em pequena, era sapatão!
— ...e fica se exibindo de um lado para o outro da rua, beijando na
boca a... — mamãe hesitou, quase incapaz de pronunciar a palavra — ...
namorada. É claro que uma toxicômana não é nada comparada com isso.
Provavelmente, Marguerite Kilfeather acha que eu tenho uma sorte dos diabos.
Rimos por entre nossas lágrimas. E fiz a promessa solene de jamais
beijar uma mulher na boca à vista dos vizinhos. Era o mínimo que eu podia fazer
pela minha mãe.

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