quarta-feira, 6 de julho de 2011

Férias!! - MARIAN KEYES Cap.59


Passei uma semana ou mais deixando um rastro de terror e destruição
por onde passava, como um anticristo. Nesse ínterim, Neil foi embora, humilde e
contrito, tão cheio de boas intenções que só faltou ficar curvo.
John Joe também foi embora. Curado e orgulhoso, já ostentando os
primórdios de seu futuro bigode de pontas retorcidas.
Chris foi embora, mas não sem antes me dar o número de seu telefone
e me fazer jurar que ligaria para ele no dia em que saísse. Durante quase uma
hora depois de sua partida, curti uma deliciosa sensação de encanto com a
atenção que ele tivera comigo, para logo depois cair numa fossa súbita e azeda.
Helen não veio mais me visitar. Surpresa, surpresa.
Vincent foi outro que chegou ao fim dos seus dois meses, e também era
outro homem, irreconhecível, totalmente diferente daquele brutamontes charlesmansonesco
que eu conhecera no meu primeiro dia. Tão manso e afável, que
dava para imaginá-lo coberto de passarinhos numa floresta, com corças,
esquilos e outras criaturas silvestres aglomerando-se ao seu redor.
Barry, o Bebê, Peter, o gnomo risonho, Davy, o jogador, e Stalin
também foram embora. Eu agora fazia parte da velha-guarda.
A saída de cada um deles, chorávamos e nos abraçávamos, trocando
endereços e promessas de mantermos contato. Eu estava surpresa com a força
dos vínculos que havíamos formado uns com os outros, a despeito de idade, sexo
e classe social.
Perguntava-me se era assim que os prisioneiros de guerra e os reféns
se sentiam. Como se tivéssemos estado no inferno e voltado juntos, unidos pela
experiência.
Embora as pessoas deixassem saudades quando iam embora, a lacuna
deixada por sua partida não ficava aberta por muito tempo. A movimentação dos
que ficavam cercava e preenchia o espaço deixado por elas. Assim, pouco depois
que Mike foi embora, por exemplo, o buraco em forma de Mike foi preenchido e
as flores cresceram sobre ele.
E, como novas pessoas chegavam regularmente, tudo ficava diferente,
mesmo, de modo que nem dava para notar que tinha chegado a haver uma
lacuna.
Por volta do fim da sexta semana, meu grupo era composto por Barney,
um sujeito com cara de que surrupiava sutiãs e calcinhas de varais; o trêmulo
Padraig, que se acalmara bastante desde o episódio da aspersão do açúcar no
seu primeiro dia; padre Johnny, um alcoólatra hidrófobo, que engravidara a
governanta; e uma jornalista de tablóide chamada Mary, gorda, feia, amargurada
e sem talento. Passara os últimos cinco anos bebendo uma garrafa de conhaque
por dia, armando para cima de todo mundo que encontrava para servir de
assunto para suas matérias, e agora sua vida estava em pandarecos. Tinha que
acontecer logo com ela, uma mulher tão boa.
E havíamos eu, Chaquie e Misty, as veteranas.
À medida que os novos internos iam chegando, seu neofitismo não
durava muito tempo. No Claustro, como sempre, a mais profunda intimidade se
estabelecia entre as pessoas antes mesmo que uma soubesse o nome da outra.
Os recém-chegados eram imediatamente engolfados na nossa roda-viva
e, em questão de minutos, era como se sempre tivessem estado lá,
Descobri que tinha entrado para a turma da terceira idade no dia em
que me escolheram para ser chefe de uma das equipes de tarefas domésticas.
Fiquei encarregada dos cafés da manhã, Chaquie dos almoços, Angela dos
jantares e Misty do aspirador de pó.
—Olha — disse Chaquie, curta e rasteira —, Angela e eu já escalamos
as nossas equipes.
— Quando? — perguntei, alarmada.
— Quando você estava assistindo tevê — disse ela, com ar esquivo.
— Sua mocréia — reclamei. — Aposto que vocês escolheram todos os
que têm uma mente sã num corpo são e que nenhuma das duas quis saber de
Francie.
— Mocréia é a avó — disse Chaquie. — Quem foi ao ar, perdeu o lugar.
Fiquei tão comovida com o "mocréia é a avó", que a perdoei. Ela tinha
progredido muito.
— Por que você e Misty não sentam e dividem entre si os que
sobraram? — sugeriu ela, sem graça.
Fiquei horrorizada. Odiava Misty. Então me ocorreu que a tensão que
geralmente vibrava entre nós duas já não estava mais tão carregada de
eletricidade desde que Chris fora embora. Mesmo assim, eu não queria me
sentar com ela para fazer nada, e foi o que disse a Chaquie.
— Ah, Rachel, vai lá — bajulou-me ela. — Age como uma adulta, dá
uma chance à menina.
— Meu Deus, quem te viu, quem te vê — reclamei. Durante as últimas
seis semanas, Chaquie e eu trocávamos detalhes do nosso ódio por Misty para
conseguirmos nos acalmar e dormir.
— Ah, coitada da menina — disse Chaquie, com ar triste. — Aquelas
coisas terríveis que aconteceram com ela, não espanta que seja a princesinha
antipática que é...
— Só falo com ela se você tirar Francie das minhas costas —
barganhei. Nenhuma de nós queria Francie na sua equipe, porque era louca
varrida, um osso duro de roer e, como se não bastasse, uma filha-da-puta
preguiçosa.
Chaquie hesitou, mas terminou por ceder.
— Tá certo, então. Que Deus me ajude.
E, muito a contragosto, fui procurar Misty.
— Temos que escalar o pessoal das nossas equipes de tarefas
domésticas — disse eu. Ela me lançou um olhar gelado.
Pegamos a lista dos cérebros desprivilegiados e dos malucos que
Angela e Chaquie haviam deixado para nós e os dividimos. Assim
que comecei a conversar com ela, descobri que, em meio a todas as
reviravoltas que estavam ocorrendo comigo, eu não odiava mais Misty. Nem me
consumia de inveja por sua beleza frágil; na verdade, ela despertava meu
instinto protetor. Houve uma troca algo relutante de afeto entre nós.
Quando nos levantamos da mesa, depois de dissimularmos como duas
adultas, Misty tocou no meu rosto. Foi um gesto estranho da sua parte, mas não
tirei o corpo fora, deixando que me tocasse, sentindo seu rompante de
compaixão, afeto e estranha amizade. Uma pequena flor numa região calcinada.
— Viu só? — Chaquie sorriu para mim mais tarde, com ar superior.
— Você devia se empregar como diplomata na ONU — disse eu, em tom
de falsa rabugice.
— Assim vou ter o que fazer quando Dermot se divorciar de mim —
disse ela, pensativa. Por algum motivo, achamos isso hilariante e rimos de
chorar.
Aquela noite, quando a lista das equipes foi para o quadro de avisos,
ouvi Larry, um viciado em heroína de dezessete anos, que cumprira pena num
reformatório por lesão corporal grave, reclamar: "Não quero ficar na equipe
daquela tal de Rachel, ela é muito agressiva."
Eu era?, me perguntei, mais divertida do que irritada.
E foi então que descobri que havia acontecido um milagre. Embora
ainda fumegasse de raiva de Luke e, em menor grau, de Brigit, já não tinha mais
raiva do fato de ser uma toxicômana. Tinha visto muitos outros internos
superarem a raiva e mergulharem nas águas calmas da aceitação, mas nem por
um segundo acreditara que isso aconteceria comigo.
Fui invadida por uma sensação inédita. Uma espécie de paz.
Como então, eu era uma toxicômana. E daí? Não me torturava mais,
desejando que as coisas fossem diferentes. Verdade seja dita, pensei comigo
mesma, eu sempre soube que havia algo de errado comigo. Pelo menos, agora
sabia o que era.
Pela primeira vez, senti alívio. Era um alívio parar de lutar, parar de
resistir à insistente consciência de que minha vida e meu comportamento não
eram normais. E era um alívio saber que eu não era louca, burra ou imprestável,
que as únicas coisas erradas comigo eram minha imaturidade e minha baixa
auto-estima, e que ambas melhorariam quando eu me afastasse dos
psicotrópicos. O futuro parecia promissor. Tudo parecia muito simples.
Durante a semana seguinte, várias outras coisas entraram nos eixos,
em conseqüência da aceitação de minha baixa auto-estima. Explicava por que eu
me atirava em cima de homens que não me queriam. Como disse Josephine
quando faltavam quatro sessões para eu ir embora:
— Você faz com que eles endossem a aversão que sente por si mesma.
E isso explicava por que a maioria dos homens parecia não me querer.
— Você era carente demais — disse Josephine. — Você os afugentava
com esse buraco enorme que tinha na sua alma.
Eu estava compreendendo tudo, fascinada com as maravilhas da
psicoterapia. Esqueceria Luke e teria um relacionamento fantástico com outro
homem.
— E agora vamos falar de sua atitude doentia em relação à comida —
anunciou Josephine. Minha felicidade despencou do céu como uma pedra.
— Você abusa da comida quase tanto quanto abusava das drogas.
Estava um esqueleto quando chegou...
— Ah, sai prá lá, não estava, não — brinquei, abaixando a cabeça, com
um sorriso encantado de vaidade.
— Viu só? — ela gritou. — Doentia, muito doentia. E se origina da
mesma fonte da sua dependência das drogas. Você evita encarar sua
imaturidade e seus defeitos, se concentrando em algo que pensa poder controlar,
qual seja, seu peso. Mas não pode mudar seu interior mudando seu exterior.
Ora você passa fome, ora come sem parar...
Comecei a protestar, mas ela me atalhou:
— Nós temos observado você, Rachel, nós sabemos. Você é obcecada
pelo seu peso. Embora isso não a impeça de se entupir toda hora de chocolate e
batatas fritas.
Abaixei a cabeça, envergonhada.
Mas nada podia esmorecer meu entusiasmo por muito tempo. Eu
estava numa boa forma tão impecável, que me sentia preparada para reconhecer
que Josephine talvez estivesse certa sobre minha atitude em relação à comida.
Por que não? A essa altura, eu já me tornara expert em acreditar em seis coisas
impossíveis antes do café da manhã. Já aceitara que era toxicômana, por que
não acrescentar uma desordenzinha alimentar à lista, só por farra? Vê se lembra
aí de mais alguma anomalia.
Não havia problema, porque, conforme Josephine dissera, "Se curar a
causa de um, curará todos os outros".
— Estou muito ansiosa para começar vida nova — disse alegremente a
Misty, aquela tarde, no refeitório.
— Vai com calma — Misty aconselhou, ansiosa. — Nem tudo entra nos
eixos num passe de mágica no instante em que você pára. Saber por que você
usava drogas é só a ponta do iceberg. Você tem que aprender a viver sem elas, e
isso não é fácil. Olha só o que aconteceu comigo. Tive uma recaída.
— Ah, não — sorri, comovida com seu zelo. — Isso não vai acontecer
comigo, estou determinada a não deixar a peteca cair.
— Você vai voltar para Nova York? — ela perguntou.
Na hora me senti confusa e assustada. E muito puta da vida. Minha
perspectiva de vida cor-de-rosa ainda não tinha chegado a Luke e Brigit, aqueles
filhos-da-mãe.
— Acho que nunca vou voltar para a porra daquela cidade —
murmurei.
— Está preocupada com o que aquelas pessoas chiques vão dizer? —
ela perguntou. — Como é mesmo o nome dela? Helenka?
— Helenka? — gritei. — Não, ela é sempre venenosa com todo mundo,
não tenho mais tempo para gente assim.
Por um momento, degustei aquela sensação de liberdade, antes de
dizer, melancólica:
— Não, é com Luke Porra de Costello e Brigit Porra de Leneham que eu
tenho problemas.
— Você vai ter que voltar — disse Misty, a sensata. Estava começando
a me irritar. — Vai ter que fazer as pazes com eles.
— Nunca vou fazer as pazes com aqueles filhos-da-mãe!
Na véspera de minha partida, à noite, Josephine me levou ao seu
escritório, para uma sessão particular. Todos tinham um tête-à-tête com sua
terapeuta pouco antes de ir embora. Como um time de futebol recebendo as
últimas instruções do técnico antes da partida decisiva. Em linhas gerais, ela
disse que eu não poderia fazer nada quando saísse.
— Nenhuma droga, inclusive álcool. Nada de passar fome, se
empanturrar de comida ou fazer exercícios em excesso. E, o mais importante de
tudo, fique longe dos relacionamentos com o sexo oposto durante um ano.
Quase desmaiei. E eu que pensei que você fosse minha amiga.
— Mas por quê? — gritei.
— Você tem uma atitude doentia em relação aos homens. A supressão
das drogas vai deixar uma grande lacuna na sua vida. Muita gente começa um
namoro para não ter que ficar a sós consigo mesma. Provavelmente, você seria
uma dessas pessoas.
Filha-da-puta atrevida, pensei, ofendida.
— Dizemos o mesmo para todos, quando saem daqui — salientou ela.
Todos?, me perguntei, pensando em Chris.
— É só por um ano — acrescentou ela, afável.
Podia ter dito um século, que daria no mesmo.
— Nesse caso, vou voltar para Nova York — disse eu, mal-humorada.
— Mesmo que não quisesse ficar sem sexo lá, seria obrigada.
— Nova York, não — disse ela. — Espere um ano até melhorar. E vai
me dizer que você ficava sem sexo quando estava com Luke? — perguntou, com
um sorriso malicioso.
Consegui me abster de soltar uma fieira de expletivos contra Luke, mas
a expressão em meu rosto deixava patente o ódio que sentia.
— Luke é um homem excepcional — disse Josephine. — Talvez você
ainda não pense assim, mas ele fez por você o que era certo.
Não dei uma palavra.
— Ele é leal, íntegro, inteligente e muito... — interrompeu-se, dando
um rápido toque nos cabelos — ... bonito.
Fiquei atônita. Como então, a velha bruxa era humana! Mas não por
muito tempo.
— Agora que você vai voltar para o mundo lá fora — disse, severa —, o
trabalho duro está só começando. Você vai ter que aceitar seu passado e
aprender novas respostas para cada situação que a vida puser na sua frente.
Nem sempre vai ser fácil.
A constatação não me perturbou. Não que eu não acreditasse nela,
mas sentia que minha firmeza de ânimo superaria tudo.
— Ainda existe um conflito mal-resolvido entre você e sua mãe — ela
alertou. — Se ficar na casa dela, provavelmente isso vai chegar a um desfecho.
Cuidado para não ter uma recaída, se isso acontecer.
— Não vou usar drogas, prometo.
— Não adianta prometer para mim — disse ela. — Não é a minha vida
que você vai estragar.
— Nem a minha — disse eu, num leve tom de desafio.
— Vá às suas sessões, continue com a terapia e, com o tempo, tudo vai
ser muito bom — ela prometeu. — Você tem tantas coisas a seu favor.
— Que tipo? — perguntei, surpresa.
— Nós aqui não nos concentramos muito nas qualidades das pessoas,
não é mesmo? — ela sorriu. — Bem, você é inteligentíssima, perspicaz, divertida
e muito afetuosa. Vimos como se comportou com os outros internos do seu
grupo e com os novatos. Você conseguiu tratar bem até Misty.
Corei de orgulho.
— E, finalmente, quero dizer que foi para mim uma experiência muito
gratificante ver o quanto você mudou e cresceu durante sua estada aqui.
— Eu era horrível? — perguntei, por curiosidade.
— Era difícil, mas não era das piores.
— Eu te odiava — disse, sem sentir. Fiquei horrorizada. Mas ela não
pareceu ficar nem um pouco ofendida.
— Haveria algo de errado com você se não odiasse — concordou. —
Como é que dizem naquele filme? "Sou o seu pior pesadelo."
— Como é que você sabia tanto sobre mim? — perguntei, tímida. —
Como sabia quando eu estava mentindo? Quando qualquer um de nós estava
mentindo?
— Passei muito tempo numa mina de carvão — disse ela. Essa resposta
não esclareceu nada para mim.
— Como assim?
— Vivi com um toxicômano e alcoólatra crônico durante anos — disse
ela, com um sorriso secreto.
Fiquei chocada. Coitada da Josephine. Quem poderia ter sido? Um de
seus pais? Ou irmãos? Talvez até mesmo um marido. Talvez tivesse sido casada
antes de se tornar freira.
— Quem era? — perguntei de chofre.
Esperei que ela me desse uma resposta nervosa, típica de analista,
como "Esta não é uma pergunta apropriada, Rachel". Mas ela não deu. Ao invés,
calou-se durante um bom tempo, os olhos fixos nos meus, antes responder em
voz baixa:
— Eu mesma.

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