No fim daquela semana, ficou claro que meus horrores não tinham
desaparecido. Tinham simplesmente se reagrupado, antes de dar início a um
novo ataque.
Era como jogar aquele videogame, Space Invaders. As lembranças
voavam na minha direção em alta velocidade, como mísseis. Cada vez mais
rápidas, cada qual mais vergonhosa e contundente do que a anterior.
No começo, rebati-as com a maior facilidade.
Brigit me implorando às lágrimas para que eu parasse de me drogar.
Destruí-a com um POW!
Eu pegando dinheiro emprestado com Gaz mesmo sabendo que ele
estava duro, e não devolvendo a ele depois. BAM!
Recobrando os sentidos no chão do banheiro, no lusco-fusco, sem
saber se estava amanhecendo ou anoitecendo. ZAP!
Ligando para meu emprego e inventando que estava doente no dia de
folga de Martine, o que a obrigou a ir trabalhar. KAPOW!
Acordando numa cama desconhecida com um homem idem, sem me
lembrar se tinha transado com ele.
Opa, perdi uma vida com essa.
As lembranças foram ficando cada vez mais nítidas e intensas, e os
intervalos entre uma e outra mais curtos. Já não haviam restado muitas vidas.
Estava cada vez mais difícil combater os inimigos.
Indo ligadona a uma festa no trabalho de Luke e fazendo-o passar um
vexame tão horrível, que ele foi obrigado a me levar para casa às nove da noite.
BIFF!
Bebendo a garrafa de champanhe que José deu para Brigit no seu
aniversário, e depois negando que tivesse sido eu. CRASH!
Dizendo a Luke que Brigit era uma piranha por medo de que ela se
sentisse atraída por ele. Lá se foi mais uma vida.
Indo à abertura de uma exposição com Luke e saindo de lá com um
cara chamado Jerry. E mais outra.
As lembranças indesejadas vinham cada vez mais depressa.
Batendo à porta de Wayne às quatro da manhã e acordando todo
mundo no seu apartamento, porque estava desesperada por um vidro de Valium.
KER-ANG!
Anna dizendo que não queria acabar como eu. BAM!
Sendo despedida. POW!!
Sendo despedida de novo. BIFF!
Esquecendo de abotoar os fundilhos do collant depois de ir ao banheiro
numa festa. E passando a noite inteira sem perceber que a parte de trás tinha
ficado pendurada para fora da calça, levando todo mundo a achar que eu estava
usando uma daquelas camisas da década de oitenta que tinham uma fralda
atrás. Perdi várias vidas com essa.
Achando que ia morrer de tanto vomitar depois de passar uma noite
enchendo a cara. BANG!
Sofrendo hemorragias nasais dia sim, dia não. POW!
Acordando coberta de hematomas, sem fazer a menor idéia de como
tinham aparecido. ZAP!
Acordando no hospital presa a um tubo de soro e um monitor. Perdi
uma vida.
Compreendendo que tinha sido submetida a uma lavagem estomacal.
E mais outra.
Enxergando claramente que poderia ter morrido. E mais outra e mais
outra e mais outra.
Game over.
Depois da sessão seguinte dos NA, na terça, quando eu já estava no
Claustro há quase cinco semanas, finalmente chegou o meu Dia do Juízo Final.
As coisas começaram de forma bastante inofensiva. Reunimo-nos às
oito horas, como sempre, e nos dirigimos para a Biblioteca.
Para minha decepção, a pessoa que viera nos dar uma palestra era
uma mulher. Outra mulher. A essa altura, eu já desconfiava que Francie era
uma fantasista de marca maior, e me perguntava se sua história de "Tem um
monte de caras nas reuniões dos NA" não seria apenas outra de suas invenções.
O nome da mulher era Jeanie e ela era jovem, esguia e bonita. Exatamente como
acontecera com a história de Nola, cada palavra saída da boca de Jeanie me deu
um solavanco de reconhecimento que me arremessou em direção à consciência
chocante, abaladora, verdadeiramente sísmica do meu vício. Ela abriu a reunião
dizendo:
— Quando abandonei meu vício, já não havia mais nada na minha
vida. Não tinha emprego, nem dinheiro, nem amigos, nem namorado, nem amorpróprio,
nem dignidade.
Senti uma identificação tão abaladora, que tive a sensação de que o
chão se inclinara e balançara sob meus pés.
— Meu vício tinha paralisado todos os meus impulsos construtivos. Eu
estava atolada, levando a vida de uma adolescente, quando todo mundo ao meu
redor se comportava como um adulto.
Um choque maior e mais violento, que me fez perder completamente o
equilíbrio.
— Num certo sentido, meu vício me fossilizava. Eu continuava viva,
mas vegetando, numa espécie de limbo.
Sentindo um pavor terrível, comecei a compreender que dessa vez os
abalos não iriam passar enquanto não atingissem sua apavorante conclusão.
— E o estranho foi que... — ela sorriu para cada um, ao dizer isso —
...achei que minha vida estava acabada quando tive que parar de me drogar.
Mas eu já não tinha vida de espécie alguma!
Procure abrigo, esse é o mais forte de todos.
Aquela noite, não consegui dormir. Do mesmo modo como um
terremoto pode virar uma casa de cabeça para baixo, fazendo com que a mesa da
cozinha vá parar no teto, meus indesejados insights mudaram a posição de cada
emoção e lembrança que eu tinha. Alterando a relação de uma com a outra,
desafiando a ordem de sua Posição original. O universo em minha cabeça se
inclinava e balançava, tudo trocava de posição, indo parar de pernas para o ar
em lugares que no passado pareceriam errados, ilógicos, impossíveis. Mas agora,
eu admitia a contragosto, estavam nos lugares onde sempre deveriam ter estado.
Minha vida era uma ruína.
Eu não tinha nada. Nenhum bem material, a menos que se possam
incluir dívidas nessa categoria. Quatorze pares de sapatos pequenos demais
para meus pés constituíam o saldo de uma vida inteira de perdularismo. Eu não
tinha mais amigos. Não tinha emprego, nem currículo. Não conseguira nada na
vida. Jamais fora feliz. Não tinha marido nem namorado (mesmo em meu
desespero, me recusava a usar a palavra "parceiro". Sou algum caubói, por
acaso?). E, dentre tudo, o que mais me magoava e confundia era que Luke, o
único homem que dera mostras de me amar de verdade, jamais tinha me amado.
No dia seguinte, uma sexta-feira, Josephine, com seu impecável senso
de oportunidade, abriu a sessão pegando no meu pé. Sabia que estava
acontecendo alguma coisa comigo, todos sabiam.
— Rachel — começou —, hoje faz cinco semanas que você está aqui.
Teve algum insight importante sobre si mesma durante esse tempo? Quem sabe
já não está conseguindo enxergar que é vítima da dependência?
Minha dificuldade para responder se deveu ao fato de que eu me
encontrava em estado de choque desde a noite anterior. Aprisionada numa
região estranha e fantasmagórica onde compreendia que era uma toxicômana,
mas por vezes achando isso tão doloroso, que voltava a não acreditar.
Não podia aceitar que, apesar de todas as defesas que erguera desde
que chegara ao Claustro, ainda assim acabaria do mesmo jeito que todos os
outros internos. Como a coisa chegou a esse ponto?
Reinava aquele clima que precede a derrocada do ditador de um país.
Mesmo quando os rebeldes já estão nos portões, no fundo ninguém acredita que
aquele tirano invulnerável vá cair.
O fim está próximo, pensei com meus botões.
Ao que outra voz imediatamente perguntou: Quê? Você quer dizer a um
palmo do seu nariz?
— Dê uma olhada nisso — disse Josephine, em tom casual, me
passando uma folha de papel. — Leia em voz alta para nós.
Olhei, mas a letra era tão tortuosa e tosca, que mal consegui decifrar
alguma coisa. Salvo por uma palavra ou outra — "vida", "pior" —, o texto era
totalmente ilegível.
—O que é isso? — perguntei, exasperada. — Parece saído do punho de
uma criança.
Com esforço, corri os olhos linha por linha, até chegar a uma que dizia
"Chega dessa vida". Meu sangue gelou nas veias quando me dei conta de que
fora eu quem escrevera aqueles garranchos incoerentes. Vagamente me
lembrava de ter decidido que "Chega dessa vida" seria o título de meu poema
sobre a ladra que se regenerava. Fiquei horrorizada. Era profundamente
chocante ser obrigada a ficar cara a cara com algo que eu fizera quando estava
travada. Eu não conseguia parar de olhar aquelas garatujas finas e tremidas.
Isso não se parece nada com a minha letra. Eu mal devia estar conseguindo
segurar a caneta.
— Dá para entender por que Brigit pensou que fosse um bilhete de
suicida — disse Josephine.
— Eu não estava tentando me matar — balbuciei.
— Acredito — disse ela. — Mesmo assim, quase conseguiu. É
apavorante, não? — Ela sorriu, me obrigando em seguida a fazer o bilhete
circular pelo aposento.
Na sessão daquela tarde, em desespero de causa, dei tratos à bola para
me livrar do ônus da toxicomania.
— Não aconteceu nada de ruim comigo para fazer de mim uma
toxicômana — tentei, cheia de esperança.
— Um grande erro que os toxicômanos e alcoólatras costumam cometer
é procurar um porquê — respondeu Josephine, em cima do laço. — Buscar
traumas de infância e lares desfeitos. Até onde eu sei, a principal razão pela qual
as pessoas usam drogas é a aversão que sentem pela realidade e por si mesmas.
Já sabemos que você se deteta, já examinamos em profundidade sua baixa autoestima.
E é óbvio, pelo estado em que você se encontrava quando escreveu
aquele bilhete, que se sentia totalmente incapaz de suportar a realidade.
Não me ocorreu nada para dizer. Eu não queria que fosse tudo tão
simples assim.
— Portanto, partindo dessa premissa — disse ela, em tom objetivo —,
você usa drogas e se comporta mal, certo?
— Acho que sim — murmurei.
— Volta a si se sentindo arrasada e cheia de sentimento de culpa com
sua aversão por si mesma e seu medo da realidade ainda maiores. E como lida
com isso? Usando mais drogas. Resultado: mais mau comportamento, mais
aversão por si mesma, uma confusão maior para enfrentar e, naturalmente,
mais drogas. Uma espiral descendente.
— Mas você podia ter parado a qualquer momento — disse ela,
atalhando meus pensamentos de como tudo fora fatal, inevitável. — Podia ter
assumido o controle de sua vida, pedindo desculpas às pessoas que magoou, por
exemplo. Assim, teria parado de contribuir ainda mais para o fosso das coisas
que detesta em si mesma. E, ao se obrigar a enfrentar um pouquinho da
realidade, verá que não é algo de que precise fugir. Você pode deter e reverter o
processo a qualquer momento. Como está fazendo agora. Dê um basta nessa
busca por um porquê, Rachel — concluiu. — Você não precisa dele.
Como então, eu era uma porra duma toxicômana. Brilhante!
A consciência disso não me trouxe nenhuma alegria. Nenhum alívio.
Era tão horrível quanto descobrir que eu era uma serial killer.
Passei o fim de semana e a maior parte da semana seguinte em estado
de choque. Quase sem conseguir falar com as pessoas, devido ao cantochão em
minha cabeça: Você é uma dependente, você é uma dependente, você é uma
dependente... Ninguém pode negar!
Era a última coisa no mundo que eu queria ser, a pior desgraça que
podia se abater sobre mim.
Eu sabia, por observar os outros no meu grupo — principalmente Neil,
que eu acompanhara quase desde o começo —, que atravessavam fases distintas
até aceitarem sua dependência. Primeiro vinha a negação, depois a
conscientização horrorizada, em seguida o ódio mortal e, por fim, se tivessem
sorte, a aceitação.
Eu já passara pela negação e a conscientização horrorizada, mas,
quando a fúria chegava, pura, venenosa, eu não estava absolutamente
preparada para ela. Josephine, é claro, limitou-se a adotar uma postura do tipo
"Ah, Dona Zangadinha, estávamos mesmo esperando a senhora", quando eu
perdia as estribeiras em grupo. Fumegava de ódio a um tal ponto, devido à
desventura de ser uma toxicômana, que por algum tempo cheguei a esquecer o
ódio que sentia de Luke.
— Sou jovem demais para ser uma toxicômana! — gritei para
Josephine. — Por que isso aconteceu comigo e com nenhuma outra pessoa que
eu conheça?
— E por que não? — perguntou Josephine, mansa.
— Mas, mas, porra... — soltei, enlouquecida de ódio.
— Por que algumas pessoas nascem cegas? Por que algumas pessoas
são aleijadas? — perguntou ela. — É tudo aleatório. E você nasceu com a
propensão a se tornar uma dependente. E daí? Podia ser infinitamente pior.
— Não, não podia! — gritei, chorando lágrimas de ódio.
— Qual é o problema? — ela perguntou, novamente com aquela
mansidão enfurecedora. — Como então, você não pode mais usar drogas? Mas
não é uma necessidade, milhões de pessoas nem encostam nelas e vivem vidas
felizes, realizadas...
— Você quer dizer que nunca mais vou poder usar drogas? —
perguntei.
— Isso mesmo — ela confirmou. — A essa altura você já devia saber
que, depois que começa, não consegue parar. Você se expôs com tanta
freqüência aos narcóticos, que perturbou para sempre o equilíbrio químico do
seu cérebro. Assim que ingere um narcótico, seu cérebro reage deixando-a
deprimida, com isso criando um desejo brutal por mais drogas, em seguida mais
depressão, mais drogas etc. Você está viciada tanto física quanto psiquicamente.
E a dependência física é irreversível — acrescentou, em tom casual.
— Não acredito — arquejei, horrorizada.
Mais uma fornada fresquinha de fúria. Lembrei-me de como Josephine
dissera a Clarence, antes de ele sair, que nunca mais poderia beber, e de como
isso me parecera perfeitamente razoável. Mas Porque era com ele. Comigo, a
história era diferente. Eu só tinha admitido ser uma toxicômana porque achava
que podia ser curada.
— E pode — disse Josephine, levando meu rosto a se erguer de
esperança. Até que a filha-da-puta acrescentou: — Só não pode mais usar
drogas.
—Se eu soubesse disso, nunca teria confessado nada — gritei com ela.
— Teria, sim — disse ela, calma. — Você não tinha escolha, era
inevitável.
Folheei mentalmente uma série de hipóteses, do tipo "Se". Se eu não
tivesse dado ouvidos a Nola. Se Anna não tivesse dito o que dissera. Se Luke não
tivesse vindo. Se Jeanie não fosse tão parecida comigo. Se, se, se... Desesperada,
prossegui minha procura pelo lugar onde cruzara a fronteira entre o nãoreconhecimento
da dependência e a aceitação da hipótese de que talvez fosse
verdadeira. Queria voltar a esse ponto específico e mudar o passado.
— Você é uma dependente crônica — disse Josephine. — Essa
conscientização era inevitável. Deus sabe que você se esquivou dela durante
bastante tempo, mas ela fatalmente acabaria chegando a você. A propósito, sua
raiva é perfeitamente normal — acrescentou. — Uma última tentativa
desesperada de fugir da verdade.
— AAAAAaarrrrrgggghhh — me ouvi gritar.
— Isso mesmo, desabafe toda a dor — encorajou ela, mansa, o que fez
com que eu gritasse de novo. — Bote tudo para fora — melhor para fora do que
para dentro. Isso vai facilitar muito a sua aceitação.
Escondi o rosto nas mãos e, com voz abafada, exortei-a a ir à merda.
— De uma maneira ou de outra — ela observou, ignorando minha
sugestão —, você estava infelicíssima vivendo aquela vida sem perspectiva,
atolada em drogas. Sem as drogas, você tem um futuro, pode fazer qualquer
coisa a que se proponha. E pense como se sentirá bem quando acordar de
manhã e conseguir lembrar o que fez na noite anterior. E com quem foi para
casa. Se tiver ido para casa com alguém.
E o intuito disso era me fazer sentir melhor?
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