Outro fim de semana. Dois dias livre do medo do questionário.
Apesar do alívio, minhas emoções ainda estavam no mais completo
caos.
Uma tristeza terrível ia e voltava, ia e voltava. Na verdade, eu ficava até
feliz quando me sentia furiosa ou desolada por causa de Luke, pois pelo menos
conseguia identificar o que estava sentindo.
A manhã de sábado começou com a aula de culinária, como sempre.
E, é claro, não faltou o tradicional bololó estrelado por Eamonn e certo
gênero alimentício, dessa vez uma lata de coco ralado, que culminou com o ditocujo
sendo rebocado, seu indefectível destino nas manhãs de sábado.
Todos lançávamos olhares furtivos para Angela, nos perguntando —
torcendo, para ser franca — se faria alguma coisa desse tipo. Mas Angela não se
parecia em nada com Eamonn, e se comportara maravilhosamente bem na
sessão da semana anterior.
Na realidade, se não fosse por sua assombrosa circunferência,
ninguém jamais diria que sofria de uma desordem alimentar, pois dava a
impressão de não comer nunca. Eu a ouvira contando para Misty que tinha um
problema glandular terrível e um metabolismo incrivelmente lento. E bem podia
ser verdade.
Ou isso, ou ela se trancava no banheiro três vezes por dia e comia
escondido o equivalente ao estoque de um supermercado de médio porte. Ou
uma coisa, ou a outra. Eu suspeitava da segunda. Na minha opinião, a
manutenção de uma bunda daquele tamanho exigia trabalho duro e dedicação.
Fiquei surpresa por Misty não comentar isso na cara de Angela, mas o
fato é que Misty era muito simpática com ela. O que me fez indagar, malhumorada,
por que não podia ser simpática comigo. Aquela putinha.
Betty levou algum tempo para fazer com que todos se organizassem
com a farinha, o açúcar, as tigelas, peneiras e demais apetrechos e ingredientes.
Clarence não parava de levantar a mão, chamando: "Professora!"
E Betty não parava de dizer: "Me chama de Betty."
E Clarence não parava de responder: "Tá, professora."
De repente, a paz baixou sobre aquela cozinha. A concentração de
todos era tão profunda, com seus suéteres marrons cobertos de farinha de trigo,
que senti a atmosfera carregada no aposento. Uma harmonia estranha, de dar
calafrios. Quase como... quase como se estivéssemos na presença do Divino, me
peguei pensando, surpresa.
Então fui assolada por um constrangimento monstro, por pensar esse
tipo de basbaquice esotérica. Dali a pouco eu estaria lendo The Celestine
Prophecy, se não abrisse o olho! (* Livro do autor norte-americano James
Redfield, tido pela crítica especializada na conta de "vigarismo pseudo-esotérico")
Mas, pouco depois, tive outro ataque de sentimentalismo agudo.
Quando os homens tiravam do forno seus bolos tortos, deformados, queimados,
solados, quase despencando, cheios de orgulho por suas criações, meus olhos se
enchiam de lágrimas. Cada um daqueles bolos era um pequeno milagre, pensava
eu, vertendo uma discreta lágrima. Esses homens são alcoólatras e alguns
fizeram coisas horríveis, mas assaram um bolo sozinhos...
Então, morri de vergonha.
Não conseguia acreditar no que tinha acabado de pensar.
Graças a Deus não tem ninguém aqui que leia pensamentos, disse a
mim mesma, para me acalmar.
Eu achava as noites de sábado as mais difíceis do Claustro. A
consciência de que o planeta inteiro, menos eu, estava se produzindo para sair
era humilhante. Mas, pior do que isso, a preocupação com Luke me infernizava.
A noite de sábado era a parte da semana em que ele tinha maior probabilidade
de conhecer outra garota. Isso me deixava doida.
Tinha esquecido completamente que estava com raiva dele. Sofria,
morta de saudades suas, ao mesmo tempo em que me sentia louca de ciúme e
medo de perdê-lo. Mesmo sendo óbvio que já o tinha perdido. Mas, se ele
conhecesse outra pessoa, aí, sim, é que eu o teria perdido mesmo.
Resolvi participar dos costumeiros jogos noturnos de sábado, para não
pensar mais nele. Já participara na semana anterior, mas morta de desânimo e
constrangimento, imaginando o tempo todo o que gente como Helenka e outros
nova-iorquinos elegantes diriam se me vissem. Passava o tempo todo lançando
olhares para os Céus e fazendo "tsc-tsc", para o caso de Helenka ser dotada de
poderes mediúnicos. Assim, ela compreenderia que eu só estava participando
por obrigação, e que certamente não estava me divertindo. Jogos!, cada detalhe
do meu comportamento parecia gritar: Que coisa mais brega!
Mas, para minha surpresa, nessa semana descobri o quanto eram
divertidos. Primeiro, dividimo-nos em duas equipes e brincamos de Red Rover,
correndo até o fim da sala de estar gelada e rompendo a barreira de braços dos
opositores. Foi tão divertido, que cheguei a ficar preocupada.
Então, alguém arranjou uma corda de pular.
Passei por alguns maus momentos quando o pessoal começou a pular
corda, porque todo mundo foi chamado, menos eu. Exatamente o mesmo que
acontecera durante toda a minha juventude. Fiquei no maior azedume, me
sentindo excluída.
Me esgueirei com o rabo entre as pernas até a parede e me joguei
numa cadeira. Mesmo que alguém me chame para entrar, pensei, enfezada, não
vou. Não vou, não vou e não vou!
— Está se divertindo? — Chris apareceu ao meu lado.
Meus pêlos se arrepiaram todos. Deus do Céu, como eu me sentia
atraída por ele. Aqueles olhos, aquelas coxas... Um dia, pensei, sonhadora.
Talvez um dia eu e ele estejamos juntos em Nova York, perdidamente
apaixonados... Nesse momento, Misty foi chamada para pular, e minha inveja
embaçou tudo.
—Eles me enojam — disse eu, revoltada. — Me enojam até dizer
chega. Fazendo a gente se lembrar da infância desse jeito.
— Não é por esse motivo que nós brincamos. — Chris ficou atônito. —
É porque nos divertimos, espairecemos um pouco. De mais a mais, que mal há
em lembrar a infância?
Não respondi.
Chris ficou com um ar preocupado.
Vagamente ouvi Misty, que pulava como um elfozinho delicado,
cantarolar "...e eu chamo Chris prá entrar..."
— Se você acha que lembrar é tão horrível assim, é melhor falar sobre
isso na sessão de grupo — disse Chris. — Ah, meu Deus, é minha vez! —
exclamou, pulando para o meio da corda com Misty.
John Joe batia a corda com Nancy, a dona-de-casa viciada em Valium.
Embora todos fossem desajeitados e se esborrachassem no chão, Nancy e John
Joe estavam um pouco descoordenados demais. Na verdade, Nancy mal se
agüentava em pé.
Fiquei olhando Chris pular corda. Canhestro e desajeitado, mas uma
gracinha. Seu rosto era o retrato da concentração, ao que ele se esforçava ao
máximo para acertar.
Fiquei lá sentada, me sentindo extremamente infeliz, ouvindo todos
eles entoarem a canção de pular corda, quando Chris entoou as palavras "...e eu
chaaamo Rachel prá entrar..."
Pulei de pé, eufórica. Adorava quando me chamavam para entrar, mas
nunca me chamavam. Eram sempre as meninas maiores.
Ou as menores.
Embrenhei-me por entre os volteios da corda e pulei ao lado de Chris
durante alguns segundos, tímida de alegria por ter sido escolhida. De repente, as
lindas botas de lezard de Chris se embarafustaram na corda, tropecei e nós dois
nos esbarrondamos no chão. Durante um momento delicioso, fiquei deitada ao
seu lado, mas logo John Joe deu um faniquito, dizendo que já estava cheio de
bater corda. Num inesperado acesso de magnanimidade, aceitei bater corda com
Nancy, a Olho-de-Vidro. Vivia tão perdida em sua selva benzodiazepínica, que
me dava medo.
Depois de John Joe quase fraturar todos os ossos, tanto os seus
quanto os alheios, foi a vez da dança das cadeiras. No início, fiquei com medo de
ser bruta e empurrar os outros das cadeiras no chão. Mas, quando percebi que o
espírito do jogo era ser o mais brutal possível, comecei a me divertir para valer.
Rindo, ofegando, brigando e lutando, tinha a impressão de que nunca me
divertira tanto na vida. Quer dizer, sem drogas.
E foi só na hora de dormir, quando me lembrei de Luke em Nova York,
provavelmente prestes a pôr o pé na rua, que minha felicidade se evaporou.
Na manhã de domingo, todos os homens do Claustro — inclusive
Chris, lamento dizer — aproximaram-se de mim e perguntaram:
— Aquela sua irmã não vem hoje?
— Não sei — fui obrigada a lhes responder. Mas, quando chegou a hora
das visitas, Helen apareceu com mamãe e papai. Nem sinal de
Anna, infelizmente. Papai ainda estava falando em oklahomês.
Quando fiquei a sós com Helen — mamãe e papai estavam absortos
numa conversa com os pais de Chris, e tenho pavor de pensar no que estariam
conversando —, passei despistadamente para ela a carta em que pedia a Anna
para me visitar, trazendo narcóticos.
— Você entregaria isso a Anna? — perguntei a Helen.
—Não vou estar com ela — disse Helen. — Arranjei um emprego.
— Emprego? — Fiquei muito surpresa. Não só Helen era uma
preguiçosa notória, como, à minha imagem e semelhança, não sabia fazer
absolutamente nada. — Desde quando?
— Desde quarta à noite.
— E que emprego é?
— De garçonete.
— Garçonete?
— Numa porra de... — interrompeu-se, à procura da palavra exata —
...numa porra de puteiro em Temple Bar chamado Club Mexxx. Com três xxx.
Isso deve te dizer alguma coisa sobre o lugar.
— Bom, er, parabéns — desejei-lhe. Embora não estivesse nem um
pouco convencida da pertinência dessas felicitações. Era como dar parabéns a
uma amiga que acabasse de descobrir que estava grávida, mas namorado, que é
bom, neca.
—Olha, não tenho culpa por ser baixa demais para ser aeromoça! —
ela exclamou, de repente.
— Não sabia que você tinha se candidatado para empurrar carrinho na
ionosfera — tornei, surpresa.
— Pois bem, me candidatei — disse ela, mal-humorada. — Eu não
estava dando a mínima, mas o fato é que não era nem mesmo uma companhia
aérea decente, era uma daquelas bem chulés, que fretam teco-tecos, Air Paella.
Estavam empregando qualquer um. Menos eu.
Fiquei chocada com o fato de sua decepção ter uma causa tão
concreta. Helen sempre conseguia exatamente o que queria. Ela escondeu o
rosto nas mãos, num gesto de desespero que me assustou.
— Eu não estava dando a mínima para isso, Rachel, fiz o resto tão
direitinho, estava uma aeromoça perfeita.
— Como assim?
— Você sabe, uma camada de base cor de tangerina com um dedo de
grossura, o pescoço pálido, um sorriso assustadoramente hipócrita e a calcinha
aparecendo por baixo da saia. Sem falar na surdez seletiva. Eu teria sido
brilhante!
"Ensaiei muito, Rachel — prosseguiu, seu lábio superior trêmulo. —
juro que ensaiei. Era nojenta com todas as mulheres e me jogava em cima de
todos os homens. Fiquei em pé ao lado do freezer, abrindo a porta e balançando
a cabeça, com um sorriso artificial, dizendo
"Obrigadatchauobrigadaobrigadatchautchauobrigadaobrigadatchauobrigadaobri
gadatchautchau" durante horas, mas disseram que eu era baixa demais. “E para
que eu preciso ser alta”?", perguntei a eles. A resposta: para colocar as coisas no
bagageiro acima do assento. Ora, qualquer um sabe que isso é uma basbaquice,
porque a obrigação da aeromoça é ignorar todas as mulheres e deixar que façam
tudo sozinhas. E, quando é um homem que precisa de ajuda, abrir a blusa, dar
uma rápida panorâmica dos seus peitos e deixar que ele também se vire sozinho.
E ele vai gostar muito de fazer isso. Vai amar.
— Por que a porta do freezer?
— Porque naquele lugar onde as aeromoças ficam quando as pessoas
descem, sempre faz frio, entendeu?
— Bom, er, a idéia do ensaio foi boa — disse eu, sem graça.
— Ensaio! — Mamãe tinha voltado. — Pois eu já ensino a ela o que é
ensaio! Degelou um freezer cheio de Magnums e crepes crocantes com aquele
"Obrigadatchauobrigada". Ensaio, ora, faça-me o favor!
— Mas eram Magnums de menta — argumentou Helen. — Não valiam o
espaço que ocupavam, foi uma eutanásia, a atitude humanitária a se tomar.
Mamãe continuou a fazer "tsc-tsc" em tom de desaprovação, como o
canguru Skippy tentando explicar que Bruce tinha caído de um hidroavião,
fraturado o braço em três lugares e precisava ser resgatado de um pântano cheio
de crocodilos.
(Referência irônica ao seriado Skippy, da TV australiana. Em todos os
episódios, devido a seus parcos recursos interpretativos, o máximo que Skippy
pode fazer é o ruído característico dos cangurus, a fim de buscar socorro para
seu dono, o menino Bruce, que invariavelmente se mete em apuros).
— Enfim, é isso aí, obrigada pela força, mãe — explodiu Helen, como se
tivesse doze anos de idade. — Acho que você preferia que eu nunca arranjasse
um emprego.
Esperei que ela soltasse uma bomba do tipo "Eu não pedi para nascer"
e saísse do quarto, batendo a porta.
Mas então me lembrei de onde estávamos, e a coisa ficou por isso
mesmo.
Mamãe tornou a se afastar, dessa vez para confraternizar com os pais
de Misty 0'Malley. Papai ainda estava atolado até os joelhos numa conversa com
o pai de Chris.
— Por acaso você tem um selo? — Voltei-me para Helen. Já que não
queria entregar minha carta para Anna, eu mesma tentaria postar a porcaria,
enfiando-a despistadamente no meio da correspondência a ser despachada, sem
que ninguém visse.
— Eu? — espantou-se Helen. — Um selo? Tenho cara de mulher
casada?
— E o que isso tem a ver com as calças?
— Só as pessoas casadas andam com selos, todo mundo sabe disso.
— Bom, deixa prá lá — disse eu. Tinha acabado de me ocorrer — como
podia ter chegado a me esquecer? — que em mais cinco dias, as três semanas
que o contrato me obrigava a permanecer expirariam. Estaria livre para ir
embora. Nem em um trilhão de anos preferiria completar os dois meses, como os
outros. Sairia dali como um bólido. E aí, poderia me drogar o quanto quisesse.
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