segunda-feira, 5 de setembro de 2011

O Morro dos Ventos Uivantes, Cap XVl

Por volta da meia-noite, nesse mesmo dia, nasceu a Catherine que o senhor viu no Morro dos Ventos Uivantes: um bebezinho frágil, de sete meses; e duas horas depois a mãe morreu, sem ter recuperado suficientemente a cons­ciência para dar pela falta de Heathcliff ou reconhecer Edgar. O sofrimento deste último é um assunto por demais doloroso para ser recordado: seus efeitos não tardariam a mostrar isso. A aumentar essa tristeza havia mais, pelo menos do meu ponto de vista, o fato de ele ter ficado sem um herdeiro homem. Ao olhar para a pequenina órfã, não pude deixar de lamentá-lo e, mentalmente, invectivei o velho Linton por (devido a uma parcialidade natural) ter deixado a propriedade à sua própria filha, em vez de para a filha do filho. Que bebê mal recebido, pobrezinha! Po­deria ter chorado até morrer sem que ninguém lhe acudisse durante aquelas primeiras horas de vida. Mais tarde com­pensamos esse descaso — mas o seu começo foi tão soli­tário quanto é provável que venha a ser o seu fim.
A manhã — bela e alegre lá fora — penetrava, sua­vizada, pelas persianas do quarto silencioso, banhando o leito e a sua ocupante numa luz rósea e coada. Edgar Linton recostara a cabeça no travesseiro e fechara os olhos. Suas jovens e corretas feições pareciam tão tocadas pela morte quanto o vulto a seu lado, e quase tão fixas: mas a fixidez dele era de exaustão e de angústia, ao passo que a dela era de perfeita paz. A fronte lisa, as pálpebras fecha­das, os lábios com a expressão de um sorriso — nem um anjo do céu pareceria mais belo do que ela. E eu compar­tilhava da infinita serenidade em que ela jazia: meu espírito nunca esteve mais próximo de Deus do que ao con­templar aquela perfeita imagem do repouso divino. Instin­tivamente, repeti as palavras que ela pronunciara, algumas horas antes: "Incomparavelmente acima de todos nós — assim estava ela, Ainda na terra ou já no céu, o seu espírito já está unido a Deus!"
Não sei se será urna peculiaridade minha, mas rara­mente deixo de me sentir feliz quando velando um morto, a não ser que algum dos presentes se ponha a gritar ou a chorar desesperadamente. Vejo na morte um repouso que nem a terra nem o inferno podem romper, e sinto a certeza de uma eternidade sem fim e sem limites — a Eternidade em que o defunto acabou de entrar —, onde a vida perdura para sempre e o amor e a alegria também. Percebi, nessa ocasião, quanto egoísmo há até num amor quanto o do Sr. Linton, ao vê-lo chorar a abençoada liber­tação de Catherine! Na verdade, poder-se-ia duvidar, de­pois da existência rebelde e impaciente que fora a sua, de que ela merecesse, por fim, o céu. Poder-se-ia duvidar, refletindo a frio; mas não ali, em presença do seu cadáver. A tranqüilidade que ele transmitia parecia garantir a tran­qüilidade eterna de quem o habitara.
— O senhor acha que pessoas como ela são felizes no outro mundo, Sr. Lockwood?
Recusei-me a responder à pergunta da Sra. Dean, que me pareceu algo heterodoxa, e ela continuou:
— Lembrando-nos da existência de Catherine Lin­ton, não me consta que tenhamos razões para pensar que sim. . . mas isso é com o Criador.
O patrão parecia ter adormecido e aventurei-me, assim que o sol nasceu, a sair do quarto para respirar um pouco de ar puro. Os criados pensaram que eu quisesse refazer-me daquela noite de vigília, mas na verdade o meu prin­cipal motivo era falar com o Sr. Heathcliff. Se de fato ele tivesse pernoitado debaixo das árvores do parque, nada teria ouvido do que se passara na granja — a menos, tal­vez, que tivesse visto o galope do mensageiro enviado a Gimmerton. Se se houvesse aproximado, ter-se-ia prova­velmente dado conta, pelo movimento de luzes e pelo bater de portas, que algo de anormal se desenrolava lá dentro. Eu desejava e, ao mesmo tempo, temia encontrá-lo. Sentia que lhe devia dar a terrível notícia e ansiava dá-la de uma vez, mas como é que não sabia. Lá estava ele, apoiado ao tronco de uma velha árvore, o chapéu na mão e o cabelo molhado do orvalho que se juntara nos galhos em rebento e que caía sobre ele. Devia ter estado muito tempo naquela posição, pois reparei num casal de melros que esvoaçava a menos de um metro dele, ocupado na construção do seu ninho e não lhe ligando mais do que se ele fosse um toro de lenha. Fugiram, mal me aproximei, e ele ergueu os olhos e disse:
— Ela morreu! Não esperei por você para saber isso. Guarde o lenço. . . não choramingue diante de mim. Vão para o inferno vocês todos! Ela não precisa das suas lágri­mas!
Eu estava chorando tanto por ele quanto por ela; às vezes sentimos pena de criaturas que não sabem o que é compadecer-se delas mesmas ou de outrem. Quando olhei para o rosto dele, percebi que já sabia — e, absurdamente, pensei que tivesse o coração despedaçado e rezasse, pois os seus lábios se moviam e os seus olhos estavam postos no chão.
— Sim, ela morreu! — confirmei, contendo os so­luços e enxugando as faces. — Foi para o céu, espero; onde todos nós, espero também, nos reuniremos a ela, se resolvermos seguir os ensinamentos de Deus e abandonar o caminho do mal!
— Quer dizer que ela seguiu os ensinamentos de Deus? — perguntou Heathcliff, tentando fazer ironia. — Morreu em santidade? Vamos, conte-me como foi. Como foi que. . . ?
Quis pronunciar o nome, mas não conseguiu; e, com­primindo os lábios, manteve uma luta silenciosa com o seu sofrimento íntimo, ao mesmo tempo em que desafiava a minha compaixão com um olhar firme e feroz. — Co­mo foi que ela morreu? — concluiu finalmente, grato, apesar da sua aparência, por ter um apoio, pois tremia, apesar do esforço para se controlar, pois tremiam-lhe até as pontas dos dedos.
"Pobre-diabo!", pensei. "Seu coração e seus nervos são iguais aos dos seus semelhantes! Por que tanto interesse em escondê-los? Seu orgulho não ilude a Deus! Ele aca­bará por fazê-lo soltar um grito de humilhação."
— Morreu em paz — respondi. — Suspirou e esti­cou-se, como uma criança acordando e mergulhando nova­mente no sono; cinco minutos mais tarde, quando lhe pus a mão no coração, ele já não batia.
— E. . . ela falou em mim? — perguntou, hesitante, como se temesse que a resposta acarretasse detalhes que não pudesse ouvir.
— Ela não recuperou os sentidos; desde que o senhor foi embora, não reconheceu mais ninguém — respondi. — Jaz com um sorriso tranqüilo no rosto, como se esti­vesse recordando os belos dias da infância. Sua vida ter­minou como se fosse um sonho. . . oxalá tenha um des­pertar tão doce no outro mundo!
— Oxalá tenha um despertar tormentoso! — excla­mou ele, numa voz terrível, batendo com o pé e rosnando, num acesso de descontrolada paixão. — Ela mentiu até o fim! Onde está ela? Não está lá. .. não está no céu . . . não morreu. . . onde é que ela está? Oh, você disse que não se importava com os meus sofrimentos! Pois bem, vou rezar. Vou rezar até não ter mais fôlego, para que você, Catherine Earnshaw, não possa ter descanso enquanto eu esteja vivo! Você disse que eu a tinha matado. . . Pois bem, assombre-me! As vítimas costumam assombrar os seus algozes. Sei de fantasmas que erraram de verdade pela terra. Persiga-me, assuma a forma que quiser, enlou­queça-me até! Mas não me deixe neste abismo, onde eu não posso encontrá-la! Oh, meu Deus, é impossível! Eu não posso viver sem a minha vida! Eu não posso viver sem a minha alma!
Bateu com a cabeça contra o tronco nodoso; e, er­guendo os olhos, uivou, não como uma criatura humana, e sim como um animal selvagem espetado até a morte com facas e lanças. Vi vários salpicos de sangue no tronco da árvore e notei que ele tinha a mão e a testa ensangüen­tadas; provavelmente passara a noite naquele desespero. Não que eu sentisse compaixão — espanto, apenas; mas relutava em deixá-lo naquele estado. Entretanto, assim que ele se deu conta de que eu o estava olhando, trovejou uma ordem para que me fosse, e obedeci. Sentia-me incapaz de acalmá-lo ou consolá-lo!
O funeral da Sra. Linton devia realizar-se na sexta-feira seguinte; até então, o caixão permaneceu aberto, ornado de flores e folhagens, na grande sala de estar. Lin­ton não arredava pé dali, dia e noite sem dormir; e — coisa que todos ignoravam, menos eu — Heathcliff tam­pouco dormia, debaixo da sua árvore, no parque. Não voltei a falar com ele, mas tinha a certeza de que tudo faria para entrar; e na terça-feira, pouco depois do anoi­tecer, quando o meu patrão, completamente exausto, con­cordara em descansar um par de horas, abri uma das jane­las, comovida pela sua perseverança e para lhe dar uma oportunidade de se despedir para sempre da inerte imagem do seu ídolo. Ele tratou logo de entrar, rápida e cautelo­samente — tão cautelosamente que a sua presença não foi traída pelo mais leve ruído. De fato, eu nem teria des­coberto que ele lá estivera, se não houvesse notado um pequeno afastamento do véu que envolvia o rosto da morta e observado, no chão, uma mecha de cabelo louro, preso com um fio de prata, a qual percebi ter sido tirada de um medalhão que pendia do pescoço de Catherine. Heathcliff abrira-o e substituíra o seu conteúdo por uma mecha de cabelo negro, o seu. Peguei na mecha loura e coloquei as duas juntas.
O Sr. Earnshaw foi, é claro, convidado a assistir ao enterro da irmã; mandou uma desculpa, mas não veio, de modo que, além do marido, a assistência era toda com­posta de arrendatários e domésticos. Isabella não fora con­vidada.
Para surpresa da gente do povoado, Catherine não foi enterrada na capela, no jazigo dos Linton, nem junto aos túmulos da sua própria família — e sim numa encosta verde, a um canto do cemitério, onde o muro é tão baixo que a urze da charneca cobriu a sepultura e o musgo quase a escondeu. Seu marido jaz hoje ao lado dela e ambos têm apenas, a marcar-lhes os túmulos, uma simples lápide em cima e um bloco de pedra cinzenta nos pés.

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