sexta-feira, 1 de julho de 2011

MELANCIA - MARIAN KEYES Cap.5

E, então, para a cama.
Era muito estranho dormir na cama onde eu passara meus anos de
adolescente. Pensara que aquele tempo havia passado para sempre.
Déjà vu.
Mas eu podia ter dispensado isso.
E era um tanto estranho receber um beijo de boa noite de minha mãe, quando
eu tinha minha própria filha no berço ao meu lado.
Eu era uma mãe, e não precisava que Sigmund Freud me dissesse que ainda
me sentia eu própria uma criança.
Kate fitava fixamente o teto, com os olhos abertos. Provavelmente ainda estava
em estado de choque, desde seu encontro com Helen. Eu me sentia um tanto
ansiosa por causa dela, mas, para minha surpresa, estava de fato cansadíssima.
Adormeci rapidamente. Embora pensasse que na verdade não seria capaz, de forma
alguma.
Nunca mais, quero dizer.
Kate acordou-me gentilmente por volta das duas da madrugada, chorando a
mais ou menos um milhão de decibéis. Imaginei se ela havia mesmo dormido.
Alimentei-a. Depois, voltei para a cama.
Voltei a dormir, mas, algumas horas mais tarde, acordei novamente com um
sobressalto, cheia de horror. De um horror que nada tinha a ver com o papel de
parede, as cortinas e o edredom exuberantemente floridos, ao estilo Laura Ashley,
que me cercavam e que eu só podia ver, obscuramente, através da escuridão.
Horror de estar em Dublin e não em meu apartamento em Londres, com meu
amado James.
Olhei para o relógio e eram (sim, você adivinhou) quatro da manhã. Eu deveria
tirar algum consolo do fato de que aproximadamente um quarto da humanidade
cujos relógios são regidos pelo Horário de Greenwich também acabara de acordar,
com um sobressalto, e estavam todos deitados, fitando miseravelmente a escuridão,
preocupando-se com tudo, desde "Será que vou me tornar desnecessário?" a "Será
que algum dia encontrarei alguém que realmente me ame?" ou a "Estarei grávida?".
Mas não era nenhum consolo.
Porque eu me sentia como se estivesse no inferno.
E compará-lo com o inferno de outra pessoa não diminui em nada a dor do
meu.
Desculpe a metáfora sanguinolenta, mas, se estão serrando a perna de uma
pessoa com uma serra de arco enferrujada, ela não se consola com o fato de que a
pessoa na cela ao lado está sendo pregada numa mesa a marteladas.
Sentei-me na cama, na escuridão.
Kate dormia tranqüilamente ao meu lado, em seu berço rosado.
Parecíamos vigias noturnos. Acordando em turnos. Pelo menos uma de nós
parecia estar acordada a qualquer hora.
Embora a semelhança terminasse aí, porque eu não podia dizer - bem, pelo
menos com um mínimo de sinceridade - "Quatro horas, tudo bem".
Meu estômago estava embrulhado com o horror de tudo aquilo. Não conseguia
acreditar que estava na casa de meus pais, em Dublin, e não em meu apartamento
em Londres, com meu marido. Senti que devia estar fora de mim, para ter saído de
Londres e deixado James para outra mulher. Eu simplesmente o abandonara!
Será que enlouquecera completamente? Eu precisava voltar. Tinha de lutar por
ele! Tinha de reconquistá-lo!
Como é que fora acabar ali?
Dobrara a esquina errada em algum universo paralelo, onde as coisas ainda
pareciam minha vida, mas era tudo mau, sinistro e errado.
Eu não podia viver sem James.
Ele era parte de mim.
Se meu braço caísse do meu corpo, eu não diria: "Deixe que fique assim, no
momento. Ele voltará, se for esse o caso. Não adianta forçar as coisas. Talvez você
só consiga afastá-lo." Afinal, era meu braço, e James fazia muito mais parte de mim
do que qualquer braço velho.
Eu precisava muito mais dele.
Amava-o muito mais.
Simplesmente não podia viver sem ele.
Desejava-o de volta. Desejava de volta minha vida com ele. E conseguiria que
voltasse. Eu o deixaria de quatro.
(Desculpe, isso foi petulante e vulgar.)
Estava dominada pelo pânico.
E se agora já fosse tarde demais?
Não deveria nunca ter partido.
Deveria ter-me mantido firme e lhe dito simplesmente que ele e eu poderíamos
resolver as coisas. Que ele não tinha a menor possibilidade de amar Denise. Que
me amava. Que eu era por demais uma parte dele para que não me amasse.
Mas eu admitira a derrota e o entregara aos braços cheios de celulite (mas
eram mesmo!) de Denise, sem nenhum protesto.
Tinha de falar com ele, agora.
Ele não se importaria se eu lhe telefonasse às quatro da manhã. Quero dizer,
era sobre James que falávamos. Ele era meu melhor amigo. Eu podia fazer qualquer
coisa e James não se importaria. Ele me entendia. Ele me conhecia.
E eu voaria de volta para Londres com Kate naquela manhã mesmo. E minha
vida estaria consertada.
A última semana seria esquecida. O corte em nossas vidas seria endireitado e
não ficariam marcas. A cicatriz desapareceria. Só quando se olhasse bem de perto
seria possível vê-la algum dia.
Tudo seria ajeitado e consertado. Tudo voltaria ao seu curso. Da maneira como
sempre estivera destinado a ser.
Fora tudo um erro terrível, uma confusão desagradável, mas nenhum dano
permanente fora causado.
Tudo está bem quando termina bem, não é mesmo?
Sei o que você está pensando.
Sei, sim.
Você está pensando: "Ela enlouqueceu".
Ora, talvez seja verdade. Talvez eu esteja com a cabeça fora do lugar, por
causa da dor.
Você está querendo me dizer: "Tenha um pouco de amor-próprio, Claire".
Mas acho que percebi que meu casamento importava mais para mim do que o
meu amor-próprio. O amor-próprio não mantém você aquecido à noite. O amorpróprio
não escuta você no fim de cada dia. O amor-próprio não lhe diz que prefere
fazer sexo com você do que com Cindy Crawford.
Não se tratava apenas de algum romance de colegial adolescente que dera
errado. Ele não convidara outra jovem beldade para o baile dos estudantes. Não se
tratava de romance.
Tratava-se de amor.
Eu amava James. Ele era parte de mim. Isso era bom demais para ser
simplesmente posto de lado.
Mesmo se o capitão do time de futebol me convidasse para ir ao baile com ele,
em lugar de James, e eu pudesse usar meu vestido novo, manter minha cabeça bem
erguida e salvaguardar meu orgulho, não teria a menor importância. Eu ainda
precisaria recuperar James.
Lutei para sair da cama, abrindo caminho com dificuldade através dos
quilômetros do camisolão de flanela que minha mãe insistira que eu usasse. Ao fugir
de Londres, eu esquecera de colocar na bagagem uma camisola. E, quando minha
mãe descobriu isso, informou-me secamente que ninguém dormia nu sob seu teto.
"E se houvesse um incêndio?" e "Esta pode ser a maneira como as pessoas se comportam
em Londres, mas agora você não está mais lá". Então, tive a escolha de usar
um pijama de lãzinha estampada de papai, ou ficar com uma das camisolas de
mamãe, larguíssimas, vitorianas, compridas até o chão, de gola alta, forradas
também de lã e com estampa florida. Não consigo imaginar como aquela mulher
conseguiu, algum dia, fazer um homem engravidá-la uma vez que seja, quanto mais
cinco, usando aquele tipo de traje.
Aquelas camisolas apagariam o fogo até de um italiano de 15 anos de idade.
Quando qualquer homem ganhasse a briga com aqueles metros de tecido e tivesse
a sorte de descobrir um pouco de carne humana, estaria exausto demais para fazer
o menor gesto que fosse.
Escolhi a camisola em vez do pijama de papai, porque a imensa quantidade de
pano da primeira me fez sentir uma garotinha, magricela, bonitinha. Enquanto o
pijama de papai era alarmante e deprimentemente apertado.
Todos os sentimentos são relativos, decidira eu. Estava errada em me sentir
gorda. Não estava gorda demais. Não havia nada de errado comigo. O resto do
mundo é que era pequeno demais. Eu não precisava mudar. O que precisava mudar
era o mundo ao meu redor. Simplesmente tornar tudo em torno de 15% maior do
que era agora - roupas, móveis, pessoas, prédios, países - e, de repente, eu estaria
novamente do tamanho certo!
Digamos, 20%. Assim, poderia sentir-me verdadeiramente frágil.
Tudo, percebia eu muito depressa, era apenas uma questão de proporção.
Tudo era bom ou ruim, gordo ou magro, grande ou pequeno apenas em
comparação com o que estava ao redor.
Então, guarde para você mesmo seus comentários espirituosos sobre minha
camisola. Havia método em minha loucura, como na de Hamlet (bem, pelo menos
nesse seu aspecto particular). Sabia o que fazia. Esbelta, era como me sentia.
Magrinha, leve, como uma garota.
Levei cerca de dez minutos para sair da cama e, afinal, quando consegui ficar
de pé no chão, quase me garroteei, pisando a ponta de trás da camisola e assim
puxando a parte da frente da gola para cima, deixando-a violentamente apertada na
minha garganta, num aperto semelhante ao de um torno.
Sufocada, tossi um bocado, e Kate começou a se mexer e se agitar
incessantemente, em seu berço. "Ah, não acorde, querida", pensei, desesperada.
"Não chore. Não há necessidade. Tudo vai ficar bem. Vou conseguir seu paizinho de
volta. Você verá. Segure as pontas só mais um pouquinho."
E, miraculosamente, ela se acalmou e aquietou, e não acordou. Saí na ponta
dos pés do quarto escuro e fui parar no patamar. A imensa camisola girava em torno
de mim, ampla e agradavelmente, enquanto eu descia as escadas com as luzes
apagadas. O telefone estava no andar de baixo, no vestíbulo. A única luz era a do
poste na frente da casa, brilhando através dos vidros opala da porta de entrada.
Comecei a discar o número do meu apartamento em Londres. O ruído da
discagem ecoava no silêncio. Soava como disparos de fuzil na quietude da casa
adormecida. "Meu Deus", pensei, abalada, "os Mc Loughlins, três casas adiante, vão
aparecer para se queixar do barulho."
Houve alguns cliques, enquanto o telefone em Dublin fazia a conexão com
outro, de um apartamento vazio, numa cidade a oitocentos quilômetros de distância.
Deixei que tocasse. Talvez umas cem vezes. Poderiam ser mil vezes.
O telefone tocava sem parar, chamando inutilmente alguém num apartamento
frio, escuro e vazio. Pude imaginar o telefone tocando sem parar e a cama macia,
lisa, onde ninguém dormira, sombras da janela lançadas em cima dela, enquanto as
luzes da rua jorravam para dentro através das cortinas abertas - abertas porque não
havia ninguém lá para fechá-las.
Mesmo assim, deixei-o tocar sem parar. E, lentamente, a esperança me
abandonou.
James não atendia.
Porque James não estava lá.
James estava em outro apartamento. Em outra cama.
Com outra mulher.
Eu estava louca em pensar que podia tê-lo de volta apenas porque o queria de
volta. Devia estar fora de mim em pensar que podia simplesmente ignorar o fato de
que ele estava morando com outra mulher. Ele me abandonara, pelo amor de Deus.
Ele me dissera que amava outra pessoa.
Vagarosamente, a sanidade voltou.
De forma temporária, a insanidade veio sem ser chamada e gritou: "Entre, a
porta está aberta." Por sorte, a Realidade chegou inesperadamente em casa e
encontrou a Insanidade Temporária vagando livre pelos corredores da minha mente,
entrando nos quartos, abrindo armários, lendo minhas cartas, espiando dentro de
minha gaveta de lingerie, esse tipo de coisa. A Realidade correu e chamou a Sanidade.
Depois de uma briga, ambas conseguiram expulsar a Insanidade Temporária
e bateram com a porta na cara dela. A Insanidade Temporária agora está caída em
cima do cascalho da estrada de acesso da minha mente, arquejando, furiosa, e
gritando: "Ela me convidou para entrar, sabem? Ela me convidou. Me queria lá."
A Realidade e a Sanidade estavam inclinadas para fora numa janela do andar
de cima, gritando: "Vá embora, desapareça. Ninguém quer você por aqui. Se não for
embora dentro de cinco minutos, chamaremos a Polícia das Emoções".
Acho que qualquer psiquiatra digno do seu nome diria que eu estava sofrendo
de Rejeição. Que o choque por James ter-me deixado tão repentinamente fora
excessivo e eu não conseguia assimilá-lo. Que eu, simplesmente, não podia aceitar
a situação, mas não sabia lidar com ela. Era mais fácil para mim fingir que nada de
mal acontecera realmente e que, se eu fingisse que tudo poderia ser arrumado, de
fato seria.
Sentei-me no chão do vestíbulo frio e escuro. Depois de muito tempo, desliguei
o telefone.
Meu coração, que batia freneticamente, voltou ao normal. Minhas mãos
cessaram de tremer. Minha cabeça parou de fingir e fantasiar.
Eu não voltaria para Londres naquela manhã.
Minha vida, agora, era ali. Pelo menos, por enquanto.
Senti-me desgraçada.
Após toda a exultação de pensar que podia falar com James e sair beijando
todo mundo, restou a maior e mais vazia tristeza que já sentira em minha vida.
Tristeza tão grande quanto um continente. Tão profunda quanto o Atlântico. Tão
vazia quanto o cérebro de Helen.
Meus pés começaram a ficar frios.
Embora eu me sentisse tão cansada quanto uma pessoa de mil anos de idade,
percebi que não conseguiria tornar a dormir.
A dor da perda que sentia era grande demais para me deixar dormir. E eu
queria, desesperadamente, dormir. Qualquer coisa para deter aquele sentimento.
Como desejei que tivéssemos uma mãe neurótica. Que guardasse pílulas para
dormir, Valium, antidepressivos na gavetinha do armário de remédios, no banheiro.
Quando, na verdade, se pedíssemos dois Paracetamol para nossa dor de
garganta/estômago/perna quebrada/úlcera duodenal perfurada, ela agiria como se
fôssemos candidatas a um convento. "Faça uma oferenda", dizia ela. "Pense em
Jesus Cristo sofrendo na cruz". Ou: "O que faria você se não tivessem inventado os
analgésicos?" E a resposta poderia ser: "Ser pregado a uma cruz seria como um dia
assistindo às corridas, em comparação com essa dor de ouvido." Ou:
"Você pode açoitar-me no pelourinho qualquer dia da semana que quiser, se
acabar com minha dor de dente."
Isso, claro, acabava com qualquer chance, por mínima que fosse, de arrancar
algum remédio da minha mãe. A blasfêmia era um dos primeiros itens em sua lista
de coisas imperdoáveis.
Ah, como eu desejava que minha irmã Anna ainda traficasse drogas. O que eu
não daria por um tablete de ecstasy, imediatamente.
Na realidade, as chances de encontrar até mesmo uma bebida alcoólica eram
pouco promissoras. Nem meus pais bebiam muito. E tinham em casa pouco álcool.
Não, falo sério. Essa não foi uma decisão deles, por questão de princípios. Não
foi uma posição que tomassem. Foi algo que aconteceu com eles.
Mesmo quando tentaram ter álcool em casa, eles, ainda assim, tiveram, na
realidade, muito pouco, e isso por minha própria causa e mais recentemente por
causa das minhas irmãs.
Nosso lema parecia ser: "Nenhum teor alcoólico é alto ou baixo demais,
considerando-se todas as bebidas em seu conjunto." Tudo que caía na nossa rede
era peixe, desde o uísque de contrabando à aguardente de cereja, passando pelo
Babycham e qualquer intermediário.
Nos tempos em que eu era mais jovem, naqueles tempos serenos antes de eu
descobrir o que o álcool podia fazer por mim, tínhamos um armário de bebidas
cheio, embora eclético.
A mais pura vodca polonesa se ombreava com garrafas de um litro de Malibu.
Garrafas de Slibovitch húngaro comportavam-se como se tivessem todo o direito de
ficar em pé ao lado de uma garrafa de Southern Comfort. Não havia guerra fria em
nosso armário de bebidas.
O caso é que papai ganhava constantemente garrafas de aguardente ou
uísque no golfe. E mamãe, de vez em quando, ganhava uma garrafa de xerez ou
algum tipo de licor de menina, no bridge. As pessoas nos davam garrafas de bebidas
de luxo, quando voltavam das férias. Nosso vizinho nos trouxe de Chipre uma
garrafa de Ouzo.
A secretária de papai nos trouxe a Slibovicht ao voltar de suas férias Atrás da
Cortina de Ferro. (Isso aconteceu em 1979, e eu e minhas irmãs a achamos
realmente ousada e corajosa, e a interrogamos demoradamente em sua volta, para
saber se ela testemunhara alguma violação dos Direitos Humanos por parte dos
húngaros. "É verdade mesmo? Eles ainda têm de usar foguetes de sinalização e
plataformas?", perguntamos, com os olhos arregalados de horror. Enquanto
Margaret, sempre prática, queria saber qual a taxa de câmbio para uma caixa de
chicletes. "De quantas caixas eu precisaria para comprar uma casa?". Sinceramente,
aquela garota tinha visão.) Anna ganhou uma garrafa amarelo fluorescente de

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