O modo como tudo terminou naquele dia foi com Jack, Jesse e eu ajudando o padre Dominic, quando ele finalmente voltou a si, a ir até um telefone, ligar para a polícia e informar que havia encontrado dois ladrõ es saqueando a igreja.
Era mentira, sim. Mas de que outro modo iria explicar os danos que Maria e Diego tinham causado? Para não mencionar o galo no cocuruto?
Então, assim que tivemos certeza de que a polícia e uma ambulência estavam a caminho, Jesse e eu deixamos o padre Dominic e esperamos com Jack o táxi que havíamos chamado, cuidando para nã o falar na única coisa que tenho certeza de que todos estávamos pensando: Paul.
Não que eu não tentasse fazer Jack me contar o que havia com o irmã o. Basicamente a conversa foi assim:
Eu: - E aí, Jack. Qual é a do seu irmão?
Jack: (com uma careta) - Não quero falar nisso.
Eu: - Dá para entender. Mas ele parece ser capaz de se mover livre mente entre o reino dos vivos e o dos mortos, e acho isso alarman te. Acha possível que ele seja o filho de Satã?
Jesse: - Suzannah!
Eu: - Quero dizer, no melhor sentido possí vel.
Jack: - Não quero falar nisso.
Eu: - O que é perfeitamente compreensí vel. Mas você já sabia que Paul era mediador também? Ou ficou tã o surpreso quanto nós? Porque não pareceu muito surpreso quando se encontrou com ele, você sabe, lá em cima.
Jack: - Realmente não quero falar disso agora.Jesse: - Ele não quer falar disso, Suzannah. Deixe o garoto em paz.
O que era fácil para o Jesse. Jesse não sabia o que eu sa bia. Que Paul, Maria e Diego ... estavam de conluio. Eu tinha demorado u m tempo para perceber, mas agora que tinha percebido, era capaz de chutar a mim mesma por n ão ter notado antes: Paul me mantivera ocupada no Friday' s enquanto Maria e Jack faziam o exorcismo de Jesse.
A observação de Paul: “É mais fácil pegar moscas com mel do que com vinagre." Maria não tinha me dito exatamente a mesma coisa, apenas algumas horas antes?
Os três - Paul, Maria e Diego - haviam formado uma trindade profana, aparentemente ligados pelo ó dio contra uma pessoa: Jesse.
Mas que motivo Paul, que só conheceu Jesse naquele momento no purgatório, teria para odiá-lo? Agora, claro, sua aversão era compreensí vel: Jesse havia lhe causado um tremendo ferimento, algo de que Paul jurou s e vingar na próxima vez em que o visse. Tenho certeza de que Jesse não estava levando isso muito a sé rio, mas fiquei preocupada. Quero dizer, tinha passado por uma tremenda encrenca para t irar Jesse de uma situação difícil. Não me sentia muito entusiasmada para vê -lo mergulhar direto em outra.
Mas não adiantava. Jack não queria falar. O garoto estava traumatizado. Bem, mais ou menos. Na verdade parecia e star se divertindo um bocado. Só não queria falar sobre o irmão.
O que me incomodou. Porque tinha um monte de perguntas. Por exemplo, se Paul era mediador - e devia ser; de que out ro modo poderia estar andando lá por cima? - , por que não tinha ajudado o irmão com o negó cio de “eu vejo gente morta", por que não disse umas palavras de encorajamento e garantido que o pobre coitado não era maluco?
Mas se eu esperava conseguir alguma resposta de Jack, fiquei tremendamente desapontada.
Acho que, se tivesse um irmão como Paul, provavelmente também não iria querer falar sobre isso.
Assim que Jack foi deixado em segurança no hot el, Jesse e eu começamos a longa volta para casa (eu nã o tinha mais dinheiro para um tá xi do hotel para casa).
Você pode se perguntar o que conversamos naquela caminhada de cinco quilômetros. Muita coisa, sem dú vida, poderia ter sido discutida.
No entanto, para dizer a verdade, não lembro. Nã o acho que tenhamos realmente falado de coisas importantes. O que havia para ser dito?
Entrei em casa com o mesmo sucesso com que havia saído. Ninguém acordou, a não ser o cachorro, e assim que viu que era eu, volto u a dormir. Ninguém tinha percebido minha ausência.
Ninguém nunca percebe.
Spike era o único, além de mim, que tinha notado o sumiço de Jesse, e sua alegria ao vê-lo foi um embaraço para todos os felinos. Dava para ouvir o gato idiota ronronando do outro lado do quarto ...
Mas não ouvi por muito tempo. Porque o que aconteceu foi que entrei, puxei as cobertas, tirei os sapatos e subi na cama. Nem lavei a cara. Subi na cama, olhei uma ultima vez para Jesse, como se para garantir que ele realmente estava d e volta, e dormi.
E fiquei dormindo até o domingo.
Mamãe se convenceu de que eu havia contraído mononucleose. Pelo menos até ver o hematoma na testa. Então decidiu que eu estava sofrendo de aneurisma. Por mais que tentasse convencê-la de que nada disso era verdade - que eu só estava muito, muitocansada -, ela não acreditou, e tenho certeza de que me arrastaria ao hospital na manhã de domingo para uma tomografia - e, eu tinha dormido por quase dois dias -, só que ela
e Andy precisavam ir a colônia de féri as, pegar o Mestre.
O negocio é que acho que morrer - mesmo que por meia hora - pode ser muito exaustivo.
Acordei morrendo de fome. Dep ois de mamãe e Andy terem saído - após arrancar a promessa de que eu não sairia de casa o dia inteiro e esperaria humil demente por eles, para que pudessem reavaliar meu estado de saúde -, comi dois pãezinhos e uma tigela de cereal antes que Soneca e Dunga ao menos aparece ssem a mesa, desgrenhados e amarfanhados. De minha parte, eu já havia tomado banho e trocado de roupa, e estava
pronta para enfrentar o dia ... ou pelo menos o desemprego, já que não tinha certeza se o Pebble Beach Hotel and Golf Resort estenderia meu contrato por ter perdido dois dias de trabalho seguidos.
Mas Soneca me tranquilizou.
- Não, tudo bem - falou enquanto enfiava Cherrios na boca. - Falei com Caitlin. Contei que você estava passando, sabe, por uma coisa. Por causa do defunto no quintal, Ela disse que tudo bem.
- Verdade? - Eu não estava escutando Soneca. Em vez disso olhava Dunga comer, sempre uma visão que provoca espanto. Desejei ter uma câmera para gravar o acontecimento para a posteridade. Ou pelo menos provar a pr óxima garota que declarasse que meu meio-irmão era um gato como ela estava errada. Fique i olhando enquanto, sem erguer o olhar do jornal aberto a sua frente, Du nga enfiava a outra metade do pãozinho na boca e, de novo sem mastigar, o ingeria como as cobras devoram ratos.
Era a coisa mais nojenta que eu tinha visto na vida. Be m, fora os besouros na caixa de suco de laranja.
- Ah. - Soneca se inclinou para trás na cadeira e pegou uma coisa no balcão atrás dele. - Caitlin disse para dar isso a você. É dos Slater. Eles foram embora ontem.
Peguei o envelope que ele jogou. Era gordo. Havia algo duro dentro. Do lado de fora estava escrito SUZAN.
- Eles só iam embora hoje - falei rasgando o envelope.
- Bem. - Soneca deu de ombros. - Saíram mais cedo. Não sei por que.
Li a primeira carta que estava no envelope. Era da sra. Slater. Dizia:
“Cara Suzan,
O que posso dizer? Você fez maravilhas pelo nosso Jack.
Ele parece um menino diferente. As coisas sempre foram mais difíceis para o Jack do que para o Paul. Jack simplesmente não tem a inteligê ncia do Paul, acho. De qualquer modo, lamentamos muito nã o podermos nos despedir, mas tivemos de partir antes da hora programada. Por favor, aceite este pequeno sinal de nosso
agradecimento, e saiba que Rick e eu estaremos lhe devendo para sempre.
Nancy Slater”
Dobrado neste bilhete havia um cheque de duzentos dólares.
Não estou brincando. E não era o pagamento da semana.
Era a gorjeta.
Pus o cheque e a carta ao lado da tigela de cereal e peguei o pró ximo bilhete no envelope. Era do Jack.“Querida Suze,
Você salvou minha vida. Sei que nã o acredita, mas salvou. Se não tivesse feito o que fez, eu ainda estaria com medo. Acho que nunca mais vou ter medo. Obrigado, e espero que sua cabeça esteja melhor. Escreva se puder.
Com amor, Jack
P.S. Por favor, não me pergunte mais sobre o Paul. Sinto muito o que ele fez. Tenho certeza de que não foi de propósito. Ele não é tão mau.”
"Ah, certo", pensei cinicamente. "Não é tão mau?" O cara era arrepiante! Podia andar livre mente na terra dos mortos, no entanto, quando o irmã o vivia morrendo de pavor porque podia ver gente morta, nem levantou um ded o para explicar. O cara era muito mau. Sinceramente esperava nunca mais vê -lo de novo.
Havia um segundo pós-escrito no bilhete de Jack.
“P.P.S. Achei que talvez você quisesse ficar com isso.
Não sei o que fazer com ele.”
Inclinei o envelope e, para minha grande surpresa, caiu a miniatura de Jesse que eu tinha visto na mesa de Clive Clemmings, na sociedad e histórica. Olhei para ela, pasma.
Teria de devolver. Foi meu primeiro pensamento. Ti nha de devolver. Quero dizer, não tinha? A gente nã o pode ticar com coisas assim. Seria como roubar.
Só que, de algum modo, nã o acho que Clive se importaria.
Especialmente depois que Dunga levantou a cabeç a sobre o jornal e disse:
- Ei, a gente saiu aqui.
Soneca ergueu os olhos da seção de automóveis onde, como sempre, estivera procurando um Camaro 67 preto com menos de 80.000 quilômetros .
- Corta essa - disse ele em voz entediada.
- Não, sério - insistiu Dunga. - Olha.
Ele virou o jomal, e ali estava uma foto da nossa casa.
Ao lado havia uma foto de Clive Clemmings e uma reproodução do retrato de Maria.
Arranquei o jornal da mão de Dunga.
- Ei - gritou ele. - Eu estava lendo isso!
- Deixe alguém que consegue pronunciar todas as pala vras grandes tentar - respondi.
E então li em voz alta para os dois o artigo de Cee Cee. Ela havia escrito, basicamente, a mesma história que eu tinha contado, começ ando com a descoberta do corpo de Jesse - só que o chamou de Hector, e não Jesse, de Silva e chegando à teoria do avô de Clive sobre o assassinato. Ba teu em todos os pontos certos, enfatizando a traição de Maria e a perversidade geral de Diego. E, sem dizer explicitamente, conseguiu indicar que ningu ém da prole do casal tinha dado em grande coisa.
É isso ai, Cee Cee.
Cee Cee deu o crédito de todas as informações ao fale cido dr. Clive Clemmings, Ph.D., que, segundo ela, estava decifrando o misté rio quando morreu, há alguns dias.
Tive a sensação de que Clive, onde quer que estivesse, ia ficar satisfeito. Não somente porque ficou parecendo um herói par ter resolvido um assassinato de 150 anos, masporque eles conseguiram achar uma foto sua em que ainda tinha a maior parte dos cabelos.
- Ei - disse Dunga quando terminei a leitura. - Por que não falaram de mim? Fui
eu que achei o esqueleto.
- Ah, é - respondeu Soneca, enojado. - Seu papel foi mesmo crucial. Afinal de contas, se não fosse você, o crânio do cara ainda podia estar intacto.
Dunga se lançou contra o irmão mais velho. Enquanto os dois rolavam pelo chão, fazendo um barulho estrondoso que o pai jamais teria admitido se estivesse em casa, pus o jornal de lado e voltei ao envelope dos Slater. Ainda havia u m pedaço de papel dentro.
“Suze”, diziam as letras fortes e inclinadas. Aparentemente não era para ser ... por enquanto.
Paul. Não dava para acreditar. O bilhete era do Paul.
“Sei que você tem perguntas. Também sei que tem coragem. O que me pergunto é se tem a coragem para fazer a pergunta mais difícil para algué m da nossa ... facção.
Enquanto isso, lembre-se: se você der um peixe a um homem, ele comera por um dia. Mas se ensiná-lo a pescar ele comera todo o peixe que você poderia ter apanhado para si mesma.
E só uma coisinha para ter em mente, Suze.
Paul”
"Nossa! ", pensei. Que encantador. Não é de espantar que nunca tenhamos combinado.
A pergunta mais difícil? O que era isso? E de que facção nós éramos, exatamente? O que esse cara sabia que eu não sabia? Aparentemente, muita coisa.
Mas uma coisa eu sabia. Independen temente do que Paul fosse - e não estava totalmente convencida de que ele fosse um mediador -, ele era um sacana. Quero dizer, Paul tinha deixado Jack na mão nã o apenas uma vez, mas duas, primeiro não se incomodando em dizer: "Ei, ã o se preocupe, garoto, para pessoas como você e eu é normal ver gente morta em tudo que é canto", e na segunda vez deixando-o sozinho
naquela igreja enquanto os dois psicopatas arr ebentavam o lugar.
Para não mencionar o que, eu estava convencida, ele tinha feito ao Jesse, um cara que ele nem conhecia.
E por isso nunca iria perdá-lo.
E certamente não iria confiar nele. Nem em suas opiniões sobre pesca.
Mas, por mais enojada que estivesse, não joguei o bilhete fora. Decidi que ele teria de ser mostrado ao padre Dom que, segundo me garantiram por telefone, estava bem - só um pouco dolorido.
Enquanto Soneca e Dunga rolavam - Dunga gritando "Sai de cima de mim, sua bicha" -, peguei meus ganhos e voltei para cim a. Ora, era meu dia de folga. Não iria passá-lo dentro de casa, apesar das ordens de mamã e. Decidi ligar para Cee Cee e ver o que ela estava a fim de fazer. Talvez a gente pudesse ir à praia. Eu merecia um pouquinho de descanso e gandaia.
Quando cheguei ao quar to, vi que Jesse já estava de pé.
Em geral ele não faz visitas matinais. Por outro lado, normalmente eu nã o durmo durante trinta e seis horas direto , por isso acho que nenhum de nós estava seguindo rigidamente a programação.De qualquer modo, eu não esperava encontrá -lo ali, por isso pulei mais de meio metro e escondi às costas a mã o que segurava sua miniatura.
Puxa, qual é! Não quero que ele ache que eu gost o dele nem nada.
- Você acordou - disse ele do banco da janela, ond e estava sentado com Spike e um exemplar de Steal This Book, de Abbie Hoffman, que eu tinh a roubado da estante de minha mãe lá embaixo.
- É ... - falei, deslizando até a cama. Talvez, se fosse suficientemente rápida,
poderia enfiar a pintura embaixo do travesseiro antes que ele notasse. - Acordei sim.
- Como está se sentindo?
- Eu? - perguntei como se houvesse mais algué m no quarto com quem ele pudesse estar falando.
Jesse pousou o livro e me olhou com outra daquelas ex pressões. Você sabe, do tipo que eu nunca consigo decifrar.
- Estou ótima.
- Bom. Precisamos conversar.
De repente não me sentia mais relaxada. De fato, saltei de pé. Não sei por quê,
mas meu coração começou a bater muito depressa.
Conversar. Sobre o que ele quer conversar? Minha mente ia a duzentos por hora.
Acho que deveríamos conversar sabre a que tinha aconte cido. Quero dizer, foi bem apavorante e coisa e tal, quase morri, e, como Paul disse, tenho u m monte de perguntas.
Mas e se fosse sobre isso que Jesse queria falar? Quero dizer, sabre a parte em que quase morri?
Eu não queria falar disso. Porque o fato é que toda essa parte, a parte em que quase morri, bem, quase morri tentando salvá -lo. Sério. Esperava que ele não tivesse notado, mas pela sua cara dava para ver que tinha, totalmente. Quero dizer, notado.
E agora queria falar sobre isso. Mas como é que eu poderia falar sabre is so? Sem deixar escapar. Quero dizer, a palavra que começa com "a".- Sabe de uma coisa? - falei bem depressa. - Não quero conversar. Tudo bem?
Realmente, realmente não quero co nversar. Estou cheia de conversas.
Jesse tirou Spike do colo e o pou sou no chão. Depois se levantou.
O que ele estava fazendo? O que ele estava fazendo? Respirei fundo e continuei falando sobre não falar.
- Só estou ... olha - falei enquanto ele dava um passo na minha direção. - Só vou ligar para Cee Cee e talvez a gente vá à praia ou alga assim. Porque realmente ... preciso de uma folga.
Outro passo na minha direção. Agora ele estava bem na minha frente.
- Principalmente de conversas - falei de modo significativo, olhando para ele. É disso que eu preciso especialmente de uma folga. De conversas.
- Ótimo – respondeu Jesse. Em seguida estendeu as mãos e segurou m eu rosto. - Não precisamos conversar.
E foi então que ele me beijou. Na boca.
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