Verão. Estação de dias longos e lentos e noites curtas e quentes.
Lá no Brooklyn, onde passei meus primeiro quinze, os verões – quando não
significavam colônia de férias – significavam ficar na entrada do prédio com minha
melhor amiga, Gina, e os irmãos dela, esperando o caminhão de sorvete passar. Quando
não estava quente demais, brincávamos de um jogo chamado Guerra, fazendo times com a garotada do bairro e atirando uns nos outros com armas imaginárias.
Quando ficamos mais velhas, claro, paramos de brincar de Guerra. Além disso, Gina e
eu começamos a dispensar o sorvete.
Não que isso importasse. Nenhum dos caras da vizinhança, aqueles com quem
costumávamos brincar, queria nada conosco.Bem, pelo menos comigo.Acho que não
achariam ruim refazer a amizade com Gina, mas quando finalmente notaram como ela
havia se transformado numa gata, Gina estava com a mira apontada para bem mais alto
do que os caras do bairro.
Não sei o que esperava do meu décimo sexto verão, o primeiro desde que me mudei
para a Califórnia para morar com mamãe e seu novo marido... e, ah, é, os filhos dele.Acho que imaginei os mesmos dias longos e lentos. Só que, na minha mente, seriam passados na praia, e não na portaria de um prédio.
Quanto àquelas noites curtas e quentes, bem, também tinha planos para elas. Só
precisava de um namorado.
Mas, por acaso, nem a praia nem o namorado se materializaram, este último porque...
sabe o cara de quem eu gostava?Bem, não estava nem um pouco interessado. Pelo
menos era o que dava para ver. E a praia porque...
Bem, porque fui obrigada a pegar um emprego.
Isso mesmo: um emprego.
Fiquei horrorizada quando uma noite, durante o jantar, mais ou menos no inicio de
maio, meu padrasto, Andy, perguntou se eu tinha me inscrito para algum trabalho de
verão. Respondi tipo: “Que papo é esse?”.
Mas logo ficou claro que, como muitos outros sacrifícios que eu deveria fazer desde
que mamãe conheceu Andy Ackerman – apresentador de um popular programa de
trabalhos manuais na TV a cabo, californiano nativo e pai de três filhos -, se apaixonou
e se casou com ele, meu longo e preguiçoso verão na praia com os amigos não
aconteceria.
No lar dos Ackerman, como logo ficou claro, você tinha duas alternativas sobre como
passar as férias de verão: com um emprego ou aulas particulares. Só Mestre, meu meio irmão mais novo – conhecido por todo mundo, menos por mim, como David -, estava
livre das duas coisas, já que era novo demais para trabalhar e tirava notas tão boas que
fora aceito numa colônia de férias de informática para o mês inteiro, onde presumivelmente estava aprendendo coisas que iriam torná-lo o próximo Bill Gates – só
espero que sem o penteado ruim e os suéteres cafonas.
Meu meio-irmão do meio, Dunga (também conhecido como Brad), não teve tanta
sorte. Dunga tinha conseguido levar bomba em inglês e espanhol – um feito espantoso,
na minha opinião, já que o inglês era sua língua natal.Por tanto, estava sendo forçado
pelo pai a ter aulas particulares cinco dias por semana... quando não estava sendo usado
como mão-de-obra escrava no projeto que Andy havia começado a fazer enquanto seu
programa de TV estava parado durante o verão: detonar grande parte do deque dos
fundos da casa e instalar uma minipiscina de água quente.
Dadas as alternativas – emprego ou escola no verão -, optei por procurar trabalho.Consegui um emprego no mesmo lugar onde meu meio -irmão mais velho, Soneca, trabalha todo verão. Na verdade ele me recomendou algo que, na época,
simultaneamente me tocou e me espantou. Só mais tarde descobri que ele havia recebido um pequeno bônus por cada pessoa que recomendou e foi contratada.
Tanto faz. O negocio é o seguinte: agora Soneca – Jake, como é conhecido pelos
amigos e pelo restante da família – e eu somos orgulhos empregados do Pebble Beach
Hotel and Golf Resort Soneca como salva-vidas e eu como...
Bem, perdi meu verão para virar babá do hotel.
Certo. Agora pode parar de rir.
Até eu admito que não é o tipo de emprego que já pensei que serviria para mim, desde
que não tenho muita paciência e certamente não gosto muito que cuspam no meu
cabelo. Mas deixe-me dizer que pagam dez dólares por hora, e isso, não inclui as
gorjetas.
E deixe-me dizer também: sabe as pessoas que ficam no Pebble Beach Hotel na Golf
Resort? É, é o tipo de gente que costuma dar gorjetas. Generosamente.
Devo dizer que o dinheiro ajudou um bocado a curar meu orgulho ferido. Se tenho de
passar o verão ralando feito uma idiota, ganhar cem pratas por dia – e freqüentemente
mais – compensa bastante. Porque quando o verão terminar devo ter, sem
questionamento, o guarda-roupa de outono mais incrível dentre todo mundo do segundo
grau da Academia Católica Junipero Serra.
Então pense nisso, Kelly Prescott, enquanto passa seu verão estirada junto à piscina
do seu pai. Já tenho quatro pares de sapatos Jimmy Choo, pagos com o meu dinheiro.
O que acha disso, srta. Cartão AmEx do Papai?
O único problema verdadeiro com meu emprego de verão – além de crianças choronas
e dos pais igualmente chorões, mais cheios da grana, claro – é o fato de que devo estar
aqui todo dia às oito da manhã.
Isso mesmo. Oito da matina. Nada de dormir até tarde para a velha Suze neste verão.
Devo dizer que acho isso meio excessivo. E acredite, reclamei. Mas a regência do
Pebble Beach Hotel e Golf Resort se manteve teimosamente inabalável para não
oferecer os serviços de babá antes das nove.
E é assim que toda manhã (não consigo dormir nem nos domingos, graças à
insistência do meu padrasto de que todos devemos nos reunir à mesa para a elaborada
mistura de café-da-manhã com almoço que ele prepara; o sujeito parece pensar que nós
somos os Camden, os Walton ou sei lá o que) acordo antes das sete...
O que, como fiquei surpresa em descobrir, tem lá suas vantagens.
Ainda que eu não coloque na lista ver Dunga sem camisa, suando feito um porco e
tomando suco de laranja direto na caixa.
Há um bocado de garotas que freqüenta m minha escola que, eu sei, pagariam para ver
Dunga – e Soneca também, por sinal – sem camisa, suado ou não. Kelly Prescott, por
exemplo. E sua melhor amiga e ex -paixão de Dunga, Debbie Mancuso. Eu própria não
entendo a atração, mas só posso supor que essas garotas não ficaram perto dos meus
meios-irmãos depois de uma refeição em que os feijões tenham aparecido de algum
modo no cardápio.
Mesmo assim, qualquer um que quisesse ver Dunga em sua imitação de modelo de
calendário poderia fazer isso facilmente de graça, só passando por nossa casa em
qualquer manhã de meio de semana. Porque é no nosso quintal dos fundos que Dunga
tem estado, aproximadamente desde as seis da manhã até sair para a aula particular às
dez, nu da cintura para cima e realizando um rigoroso trabalho manual sob os olhos de
águia do pai.Nesta manhã específica – a manhã em que eu o peguei, de novo, bebendo diretamente da caixa de suco, hábito do qual mamãe e eu temos tentado, com pouco sucesso, curar todo o clã Ackerman -, aparentemente Dunga estivera cavando, já que deixou uma trilha de lama sobre o que já fora um balcão imaculado (sei disse: ontem à noite foi minha vez de limpar).
- Ah – falei ao entrar na cozinha. – Que imagem mais linda!
Dunga baixou a caixa de suco de laranja e me olhou.
- Você não tem de estar em algum lugar? – perguntou ele enxugando a boca com as costas da mão.
- Claro. Mas esperava que, antes de sair, pudesse curtir um belo copo de suco reforçado com cálcio. Agora vejo que não será possível.
Dunga sacudiu a caixa.
- Ainda tem um pouco.
- Misturado com seu cuspe? – contive um tremor. – Acho que não.
Dunga abriu a boca para dizer alguma coisa – presumivelmente a sugestão de sempre,
de que eu vá lamber um prego -, mas a voz do pai gritou de f ora da porta de vidro que
dá para o deque.
- Brad – gritou Andy. – Chega de descansar. Volte aqui e me ajude a baixar isto.
- Dunga bateu com a caixa de suco no balcão. Mas antes que ele pudesse sair da
cozinha eu o impedi com um educado:
- Com licença?
Como ele não usava camisa, pude ver os músculos no pescoço e nos ombros de Dunga
se retesando enquanto eu falava.
- Certo – disse ele girando e voltando à caixa de suco. – Vou guardar. Minha nossa,
você vive pegando no meu pé por causar dessas mer...
- Eu não me importo com isso – interrompi apontando para a caixa, se bem que ela
devia estar deixando o balcão grudento. – Quero saber o que é aquilo.
Dunga olhou para onde eu tinha apontado. Piscou para o objeto oblongo incrustado de
terra.
- Não sei – disse ele. – Achei enterrado no quintal enquanto estava arrancando uma
das colunas.
Levantei com cuidado o que parecia ser uma caixa de metal, com cerca de 15
centímetros de comprimento e uns cinco de largura, muito enferrujada e coberta de
lama.Mas havia alguns lugares onde a lama tinha saído, e dava para ver algumas
palavras pintadas na caixa.As poucas que pude identificar eram aroma e qualidade
garantida.Quando sacudi a caixa, ela fez barulho.Havia algo dentro.
- O que tem nela? – perguntei.
Dunga deu os ombros.
- Como é que eu vou saber? Está fechada pela ferrugem. Eu ia pegar...
Não descobri o que Dunga iria fazer com a caixa, já que nesse momento seu irmão
mais velho, Soneca, entrou na cozinha, pegou a caixa de suco de laranja, abriu e engoliu
o resto. Quando terminou, amassou a caixa, jogou no compactador de lixo de depois,
aparentemente notando minha expressão pasma, perguntou:
- O quê?
Não sei o que as garotas vêem neles. Sério. Parecem animais. Não daqueles fofinhos.
Enquanto isso, lá fora, Andy estava chamando Dunga de novo, com voz imperiosa.
Dunga murmurou baixinho algumas palavras extremamente pitorescas e depois
gritou:
- Já estou indo. – E saiu irritado.Já eram 7h45, por isso eu e Soneca tínhamos mesmo de “ligar os motores”, como ele dizia, para chegar a tempo ao hotel. Mas ainda que meu irmão mais velho tenha a tendência de passar pela vida como sonâmbulo, não há nada sonambulístico em seu modo de dirigir. Marquei o cartão de ponto cinco minutos antes da hora.
O Pebble Beach Hotel and Golf Resort se orgulha da eficiência. E de fato tudo funciona muito bem. Como babá contratada, é minha responsabilidade, depois de marcar o ponto, perguntar quem são meus encarregados no dia. É então que descubro se estarei levando papinha de cenoura ou molho de hambúrguer do cabelo depois do trabalho. Em geral prefiro os hambúrgueres, mas há algo a ser dito sobre papinhas de cenoura: em geral as pessoas que comem isso não podem dar respostas mal -educadas à gente.
Mas quando ouvi com quem ia trabalhar naquele dia especifico, fiquei desapontada,
mesmo sendo um comedor de hambúrguer.
- Suzannah Simon – gritou Caitlin. – Você vai ficar com Jack Slater.
- Pelo amor de Deus – falei a Caitlin, que era minha supervisora. – Eu fiquei com o
Jack Slater ontem. E anteontem.
Caitlin só tem dois anos a mais do que eu, mas me trata como se eu tivesse 12. De fato
tenho certeza de que o único motivo pelo qual me tolera é o Soneca. É tão caída por ele
quanto todas as outras garotas deste planeta... menos eu, claro.
- Os pais de Jack requisitaram você, Suze – informou Caitlin sem nem mesmo erguer
o olhar da prancheta.
- Você não podia ter dito que eu já tinha sido escolhida?
Nesse ponto Caitlin levantou a cabeça e me espiou com os olhos frios, com lentes de
contato azuis.
- Suze, eles gostam de você.
Mexi nas alças do maiô. Eu estava usando o maiô azul -marinho regulamentar, por
baixo da camiseta regata azul -marinho regulamentar e do short cáqui. Com pregas,
imagine só. Horroroso.
Eu falei do uniforme, não falei?Quero dizer, a parte em que tenho de usar uniforme no
trabalho?Não brinca. Todo dia. Uniforme!
Se eu soubesse, não teria me candidatado ao emprego.
- É – respondi. – Sei que eles gostam de mim.
O sentimento não é recíproco. Não que eu não goste do Jack, se bem que ele é de
longe o menininho mais chorão que já conheci. Puxa, dá para ver por quê – é só olhar os
pais, dois médicos obcecados pela carreira, que acham que largar o filho com uma babá
de hotel durante dias sem fim enquanto vão velejar e jogar golfe é um ótimo programa
em família.
Na verdade é com o irmão mais velho de Jack que tenho problema. Bem, não
necessariamente problema...
É mais tipo: evito passar por ele quando estou usando meu incrivelmente antichique
short cáqui do uniforme do Pebble Beach Hotel and Golf Resort.
É. O pregueado.
Só que, claro, toda vez que topo com o cara, desde que chegou com a família ao hotel
na semana passada, estou usando essa roupa estúpida.
Não que eu me importe particularmente com o que Paul Slater acha de mim. Quero
dizer, meu coração (para inventar uma frase original) pertence a outro.
É uma pena que esse outro não demonstre qualquer sinal de querer. Meu coração,
claro.
Mesmo assim, Paul – esse é o nome dele; o irmão mais velho de Jack, quero dizer:
Paul Slater – é bem incrível.Quero dizer, não que não seja um gato. Ah, não, Paul é um gato e divertido. Toda vez que pego ou deixo Jack na suíte da família, e seu irmão, Paul,
por acaso está, ele sempre diz alguma coisa irreverente sobro o hotel, sobre os pais ou
sobre ele mesmo. Não uma coisa maldosa nem nada. Só divertida.
E acho que ele é inteligente, porque sempre que não está no campo de golfe com o pai
ou jogando tênis com a mãe, está lendo na beira da piscina. E não um livro típico de
piscina. Nada de Clancy, Crichton ou King. Ah, não. Estamos falando de coisas escritas
por caras como Nietzsche ou Kierkegaard.
Sério. Quase faz a gente pensar que ele não é da Califórnia.
E claro que, por acaso, não é: os Slater são de Seattle.
Então veja só, não é só porque Jack Slater é o garoto mais chorão que já conheci:
também há o fato de seu irmão gato me ver de novo usando um short que me faz parecer
mais ou menos do tamanho d o Canadá.
Mas Caitlin estava totalmente desinteressada por meus sentimentos.
- Suze – disse ela, olhando de novo para a prancheta. – Ninguém gosta do Jack. Mas o
fato é que o Dr. e a Sra. Slater gostam de você. Por isso vai passar o dia com Jack.
Capice?
Suspirei fundo, mas o que poderia fazer? Fora o meu orgulho, meu bronzeado era a
única coisa que iria realmente sofrer por passar mais um dia com Jack. O garoto não
gosta de nadar, de andar de bicicleta, patins, de jogar frisbee nem nada que tenha a ver
com o ar livre. Sua idéia de diversão é ficar dentro do quarto assistindo a desenho
animado.
Não estou brincando. Sem qualquer dúvida ele é o moleque mais chato que já conheci.
Acho difícil acreditar que ele e Paul venham do mesmo caldeirão de genes.
- Além disso – acrescentou Caitlin enquanto eu estava ali parada, fumegando -, hoje
Jack faz oito anos.
Encaro-a.
- É aniversário dele? È o aniversário de Jack e os pais vão deixá-lo com uma babá o
dia inteiro?
Caitlin me lançou um olhar severo.
- Os Slater disseram que vão voltar a tempo de levá -lo para jantar no Grill.
O Grill. Uau. O Grill é o restaurante mais chique do hotel, talvez de toda a península.
A coisa mais barata que servem lá deve custar uns 15 dólares e é salada da casa. O Grill
é o lugar menos divertido para levar um garoto que faz oito anos. Puxa, nem mesmo
Jack, a criança mais chata do mundo, poderia se divertir ali.
Não entendo. Realmente. Puxa, o que há de errado com esse pessoal? E como, vendo -
se o modo como tratam o filho mais novo, o outro conseguiu sair tão...
Bem, gato?
Pelo menos essa palavra que saltou na minha mente quando Paul abriu a porta da suíte
da família em resposta à minha batida, depois ficou ali rindo para mim, com uma das
mãos no bolso da calça creme, o outra segurando um livro de alguém chamado Martin
Heidegger.
É, sabe qual o último livro que eu li? Deve ter sido O cãozinho Clifford. Isso mesmo.
E, certo, eu estava lendo para uma criança de cinco anos, mas mesmo assim. Heidegger.
Nossa!
- E aí? Quem ligou para o serviço de quarto e pediu a garota bonita? – perguntou Paul.
Bom, certo, essa não foi engraçada. Na verdade, pensando bem, foi meio assédio
sexual. Mas o fato de o cara ter minha idade, mais de um metro e oitenta e pele
bronzeada, com cabelos castanhos encaracolados e olhos azuis como o oceano logo
além do campo de golfe do Pebble Beach, fez a coisa não ser tão ruim.Não tão ruim. O que é que eu estou falando?! O cara poderia me assediar sexualmente quando quisesse. Pelo menos alguém estava a fim.
Sorte minha ele não ser o cara que eu queria.
Não admiti isso em voz alta, claro. O que falei foi:
- Ha, ha. Estou aqui por causa do Jack.
Paul se encolheu.
- Ah – falou balançando a cabeça num desapontamento fingido -, o baixinho é que
tem sorte.
Ele manteve a porta aberta para mim e eu entrei na sala chique da suíte. Jack estava
onde costumava ficar, esparramado no chão diante da TV. Não notou minha presença,
como era seu costume.
Sua mãe, por outro lado, me reconheceu:
- Ah, oi, Suzan. Rick, Paul e eu vamos ficar no campo de golfe a manhã inteira.
Depois vamos almoçar no Grotto, e mais tarde temos compromisso com os personal
trainers. Então, se você puder ficar até a hora de voltarmos, mais ou menos à s sete,
agradeceríamos. Certifique-se de que Jack tome banho antes de pôr a roupa para o
jantar. Deixei um terno para ele. É o aniversário dele, você sabe. Bom, tchauzinho,
vocês dois. Divirta-se Jack.
Como é que ele não iria se divertir? – perguntou Paul, com um olhar significativo na
minha direção.
E então os Slater saíram.
Jack ficou onde estava – diante da TV, sem falar comigo, nem mesmo olhando para
mim. Como isso era comportamento típico, não me alarmei.
Atravessei a sala – passando por cima do Jack – e fui abrir a porta dupla que dava
num terraço virado para o mar. Rick e Nancy Slater estavam pagando seiscentos dólares
por noite pela vista, que era a baía de Monterey luzindo em turquesa sob o céu azul sem
nuvens. Da suíte dava para ver a fatia amarela de praia sobre a qual, se não fosse meu
padrasto bem-intencionado mas equivocado, eu estaria curtinho meu verão.
Não é justo. Não mesmo.
- Certo garotão – falei depois de captar a vista por um ou dois minutos e ouvir o pulsar
calmante das ondas. – Vá colocar um calção de banho. Vamos para a piscina. O dia está
lindo demais para ficar aqui dentro.
Como sempre, foi como se eu tivesse beliscado Jack, em vez de sugerir um dia divertido na piscina.
- Mas por quê? – gemeu ele. – Você sabe que eu não sei nadar.
- Exatamente por isso. Você está fazendo oito anos. Um garoto de oito anos que não
sabe nadar não passa de um otário. Você não quer ser um otário, não é?
Jack opinou que preferia ser um otário a sair da suíte, fato que eu conhecia muito bem.
- Jack – falei caindo numa poltrona perto dele. – Qual é o seu problema?
Em vez de responder, Jack rolou de barriga para baixo e fez uma careta para o tapete.
Mas eu não ia deixá-lo em paz. Sabia do que estava falando, o negócio de ser otário. Ser
diferente no sistema educacional público – ou mesmo particular – dos Estados Unidos
não é legal. Não podia imaginar como Paul tinha deixado isso acontecer – seu
irmãozinho virar um chorãozinho em quem a gente quase tinha vontade de dar um tapa.
Mas sabia muito bem que Rick e Nancy não faziam nada para consertar isso. Estava por
minha conta salvar Jack Slater de virar o saco de pancadas de sua escola.
Não pergunte por que eu me importava. Talvez porque, de um modo estranho, Jack
me lembrasse o pequeno Mestre, meu meio -irmão mais novo, o que está na colônia de
férias de informática. Apesar de ser um careta no sentido mais puro da palavra, Mestre é uma das minhas pessoas prediletas. Até mesmo tenho me esforçado para chamá-lo pelo
nome, David... pelo menos na frente dele.
Mas Mestre é – praticamente – capaz de se virar com seu comportamento bizarro
porque tem memória fotográfica e capacidade computacional de processar informações.
Jack, pelo que dava para ver, não possuía essas habilidades. De fato sentia que ele era
meio burrinho. De modo que não tinha desculpa para as excentricidades.
- Qual é? – perguntei. – Você não quer aprender a nadar nem jogar frisbbe, como uma
pessoa normal?
- Você não entende – respondeu Jack para o tapete, de modo pouco claro. – Eu não
sou normal. Sou... diferente dos outros.
- Claro que é – falei revirando os olhos. – Todos nós somos especiais e únicos, como
flocos de neve. Mas há o diferente e há o esquisito. E você, Jack, vai ficar esquisito, se
não tomar cuidado.
- Eu... eu já sou esquisito.
Mas o garoto não quis ser mais especifico, e não posso dizer que pressionei muito,
tentando descobrir o que ele queria dizer. Não que tenha imaginado que ele gostasse de
afogar gatinhos nas horas livres, ou algo assim. Só achei que queria dizer esquisito no
sentido geral. Bom, de vez em quando todo mundo se sentia esquisito. Talvez Jack se
sentisse esquisito com um pouco freqüência, mas afinal, tendo Rick e Nancy como pais,
quem não se sentiria? Provavelmente vivi am lhe perguntando por que não podia ser
mais parecido com o irmão mais velho, Paul. Isso bastaria para deixar qualquer criança
meio insegura. Quero dizer, qual é! Heidegger? Nas férias de verão?
Sou muito mais O cãozinho Clifford.
Falei a Jack que tanta preocupação iria deixá-lo velho antes da hora. Depois ordenei
que fosse vestir o calção de banho.
Ele foi, mas não exatamente com pressa, e quando finalmente saímos e estávamos na
caminho de tijolos para a piscina, já eram dez horas. O sol batia forte, mas o calor ainda
não estava desconfortável. Na verdade quase nunca faz um calor desconfortável em
Carmel, mesmo no meio de julho. Lá no Brooklyn a gente praticamente não pode sair
de casa em julho, de tão abafado. Mas em Carmel quase não há umidade, e sempre
sopra uma brisa fresca do Pacifico.
Tempo perfeito para namorar. Se por acaso eu tivesse. Quero dizer, um namorado. O
que, claro, não tenho. E provavelmente nunca terei – pelo menos o que eu quero – se as
coisas continuarem como estão.
De qualquer modo, Jack e eu íamos pelo caminho de tijolos para a piscina quando um
dos jardineiros saiu de trás de um enorme arbusto de forsítia e me cumprimentou com a
cabeça.
Isso não seria estranho – na verdade fiquei amiga de todo o pessoal do paisagismo ,
graças aos muitos frisbees que perdi enquanto brincava com as crianças sob meus
cuidados -, a não ser pelo fato de que esse jardineiro em particular, Jorge, que deveria se
aposentar no fim do verão, em vez disso sofreu um araque cardíaco alguns dias ante s e,
bem...
Morreu.
No entanto, ali estava o Jorge, com seu macacão bege, segurando uma tesoura de poda
e balançando a cabeça para mim, como tinha feito na última vez em que o vi, neste
mesmo caminho, há alguns dias.
Eu não estava muito preocupada com a reação de Jack diante de um defunto que
aparecesse e balançasse a cabeça para a gente, já que, na maior parte das vezes, sou a
única pessoa que conheço que pode ver. Quero dizer, os mortos. Por isso estava
totalmente despreparada para o que acontece u em seguida...Jack soltou a mão da minha e, com um grito estrangulado, correu para a piscina.
Isso era estranho. Mas, afinal de contas, Jack era estranho. Revirei os olhos para Jorge
e corri atrás do garoto, já que, afinal de contas, estou sendo paga para cuidar dos vivos.
Todo o negócio de ajudar os mortos tem de ficar em segundo plano enquanto estou no
Pebble Beach Hotel and Golf Resort. Os fantasmas simplesmente precisam esperar.
Quero dizer, não é como se eles estivessem me pagando. Ha! Bem que eu queria.
Encontrei Jack encolhido numa espreguiçadeira, soluçando em sua toalha. Felizmente
ainda era bastante cedo e não havia muita gente na piscina. Caso contrário talvez eu
tivesse de dar alguma explicação.
Mas a única outra pessoa ali era Soneca, lá no alto em sua cadeira de salva -vidas. E
pelo modo como Soneca apoiava a bochecha na mão, ficou bem claro que seus olhos,
por trás das lentes do Ray-Ban, estavam fechados.
- Jack – falei, sentando-me na espreguiçadeira ao lado. – Jack, qual é o problema?
- Eu... eu já disse – soluçou Jack em sua toalha branca e fofa. – Suze... eu não sou
como as outras pessoas. Sou como você disse. Sou... esquisito.
Eu não sabia do que ele estava falando. Presumi que só estávamos continuando a
conversa do quarto.
- Jack. Você não é mais esquisito do que qualquer pessoa.
- Não – soluçou ele. – Eu sou. Você não entende? – Então ele ergueu a cabeça, me
olhou direto nos olhos e sibilou. – Suze, você não sabe por que não gosto de sair?
Balancei a cabeça. Não tinha sacado. Mesmo então, eu não tinha sacado.
- Porque quando saio – sussurrou Jack -, eu vejo gente morta.
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