quinta-feira, 30 de junho de 2011

As Crônicas de Nárnia - O Sobrinho do Mago - Cap.4


4
O SINO E O MARTELO


Não pôde haver dúvida sobre a magia dessa vez. Lá se foram eles aos emboléus, primeiramente através da escuridão e, depois, através de um turbilhão de formas em movimento, formas que podiam ser quase tudo que se pode imaginar. Foi ficando mais claro. De repente sentiram que estavam em cima de algo sólido. Um instante mais e as coisas ficaram em foco; já podiam distingui-las.
– Que lugar mais estranho! – exclamou Digory.
– Não estou gostando nada daqui! – disse Polly, com um tremor.
Antes de tudo, chamou-lhes a atenção a luz. Não era nada parecida com a luz do sol. E não era como a luz elétrica, ou de lampiões, ou de velas, ou qualquer outra luz que já tivessem visto. Era uma luz tristonha, meio avermelhada, nada comunicativa. Uma luz parada.
Estavam numa superfície plana e pavimentada, com grandes edifícios ao redor; era uma espécie de pátio. O céu era de uma escuridão fora do comum, de um azul quase preto.
– Que clima mais engraçado – disse Digory. – Será que chegamos na horinha de uma tempestade? Ou de um eclipse?
– Não estou gostando nem um pouquinho – repetiu Polly.
Estavam cochichando, mesmo sem saber por quê. E continuavam de mãos dadas, também sem saber o motivo.
As paredes ao redor do pátio eram muito altas, com janelões sem vidraças. Arcos sobre colunas abriam bocas escuras como túneis de estradas de ferro. Fazia um friozinho.
A pedra das construções parecia vermelha, mas devia ser o reflexo da luz esquisita. Evidentemente era um lugar muito antigo. Muitas das pedras que pavimentavam o pátio estavam rachadas, e nenhuma delas se ajustava bem à outra. Um dos pórticos em arco estava atulhado de destroços.
As crianças deram várias voltas, examinando os recantos do pátio. Tinham medo de que alguém – ou alguma coisa – as espreitasse enquanto estivessem de costas.
– Acha que existe alguém aqui? – murmurou Digory, tomando coragem.
– Acho que não. Está tudo em ruínas. Não ouvimos nem um barulhinho até agora.
– Vamos ficar quietos e prestar atenção – sugeriu Digory.
Apuraram os ouvidos, mas a única coisa que ouviram foi o bate-bate do coração. O lugar era no mínimo tão silencioso como o silencioso Bosque entre Dois Mundos. Mas era um silêncio diferente. A calma do bosque era cálida e cheia de vida (quase que se podia ouvir as árvores crescendo); ali, ao contrário, era um silêncio morto, gelado e vazio. Não dava para imaginar uma planta crescendo.
– Vamos para casa – disse Polly.
– Mas ainda não vimos nada! – protestou Digory. – já que estamos aqui, vamos dar uma espiada.
– Aposto que não há nada que interesse neste lugar.
– Ora, bolas! Que graça tem encontrar um anel mágico, que leva a gente a outros mundos, se você tem medo quando chega lá e quer dar para trás?
– Quem está falando em dar para trás? – protestou Polly, largando a mão de Digory.
– Só quis dizer que você não parece muito entusiasmada.
– Pois fique sabendo que vou aonde você for.
– Além do mais, a gente pode cair fora quando quiser. Vamos pôr os anéis verdes no bolso esquerdo. Não podemos é esquecer que os amarelos estão no bolso direito. Pode ficar com a mão pertinho do bolso, mas não meta o dedo lá dentro: é tocar no amarelo e sumir.
Fizeram assim e caminharam para um pórtico enorme, que dava para o interior de um dos edifícios. Quando chegaram perto, viram que lá dentro não era tão escuro quanto tinham pensado. A vasta sala apenumbrada estava vazia, mas, no lado mais distante, erguia-se uma fileira de colunas com arcos interligados. Dos arcos jorrava a mesma luz fatigante. Atravessaram o salão com muito cuidado, temendo encontrar no chão um buraco ou coisa pior. Quando afinal chegaram ao outro lado, cruzaram os arcos e se viram em outro pátio ainda maior.
– Aquilo ali não parece muito seguro – disse Polly, apontando para um lugar onde a parede fazia uma barriga, como se estivesse pronta para desabar no pátio. Em certo ponto faltava uma coluna entre dois arcos. Era evidente que o lugar estava abandonado há centenas, talvez milhares de anos.
– Se agüentou até agora, acho que agüenta mais um pouco – disse Digory. – Mas o jeito é não fazer barulho. Você sabe que um barulhinho pode causar um desabamento... como as avalanches de neve nos Alpes.
Passaram do pátio a outro pórtico, de lá a uma escadaria, desta a uma fileira de salões, uns depois dos outros, até que se sentiram tontos, tão vastas eram as dimensões de tudo. Estavam sempre imaginando que iriam encontrar ar livre, na esperança de ver, afinal, que espécie de região circundava o enorme palácio. Mas só encontravam pátio depois de pátio.
Devia ter sido uma beleza de lugar quando as pessoas ali viviam. Num dos pátios havia um chafariz, com um grande monstro de pedra de asas abertas e boca escancarada. Embaixo, a larga bacia de pedra, que em outros tempos devia aparar a água, estava mais seca do que um osso ao sol.
Em outros lugares restavam galhos secos de uma espécie de trepadeira que se enroscara pelas colunas e chegara a derrubar algumas. Mas as trepadeiras estavam mortas há muito tempo. Não viram formigas, nem aranhas, nem nenhuma dessas criaturinhas que costumam viver nas ruínas, e, entre as fendas das lajes partidas, nada de capim, nem musgo.
Era tudo tão lúgubre e monótono, que também Digory começou a pensar que talvez fosse melhor colocar o anel amarelo e partir de volta para a verde e cálida floresta do lugar intermediário. Foi quando chegaram a uma enorme porta de folhas duplas, feita de um metal que poderia ser ouro. Entreaberta, era um convite a uma olhadela. Os dois olharam e recuaram para tomar fôlego, pois ali finalmente havia algo digno de ser visto.
Por um instante acharam que o salão estivesse cheio de gente, centenas de pessoas, todas sentadas e impecavelmente imóveis. Digory e Polly também ficaram impecavelmente imóveis por um bom tempo, de olhos fixos lá dentro. Por fim chegaram à conclusão de que as criaturas que estavam contemplando não eram reais. Não passava entre elas o menor sopro de vida. Pareciam estátuas de cera, as mais perfeitas que já existiram.
Dessa vez Polly tomou a dianteira. Havia na sala uma coisa muito mais interessante para ela do que para Digory: as figuras usavam roupas deslumbrantes. Quem gostasse de roupagens bonitas não podia resistir à tentação de chegar mais perto. E o resplendor daquelas cores tornava a sala não propriamente animada ou animadora, mas de certo modo suntuosa e majestosa, depois do vazio e do pó das outras salas. Contava com um número maior de janelas e era bem mais clara.
Mal posso descrever as roupagens. Todas as figuras envergavam mantos e usavam coroas. Os mantos eram rubros e cinza-prateado, ou purpúreos com vívidos tons verdes, bordados com desenhos de flores e de estranhos animais. Pedras preciosas de tamanhos aberrantes refulgiam nas coroas, nos colares, nos cintos.
– Não entendo é como esses tecidos não apodreceram há muito tempo – disse Polly.
– Magia – murmurou Digory. – Não está sentindo o encantamento? Percebi logo que entrei.
– O mais barato desses vestidos custaria um dinheirão em Londres!
Mas Digory estava mais interessado nas fisionomias, que eram mesmo dignas de ser olhadas. As figuras estavam sentadas em cadeiras de pedra nos dois lados da sala, deixando livre o espaço do meio. – Parece boa gente – falou Digory.
Polly assentiu com a cabeça. As feições eram simpáticas. Homens e mulheres pareciam bondosos e inteligentes. Deviam descender de uma raça bonita. Mas, à medida que as crianças deram alguns passos na sala, aproximaram-se de faces bem diferentes. Rostos solenes. Para falar com aquelas figuras seria indispensável caprichar na gramática. Quando avançaram um pouco mais, encontraram-se diante de faces das quais não gostaram nada. Eram rostos de expressão forte e orgulhosa, porém cruéis. Mais adiante as feições pareciam ainda mais perversas. Um pouquinho mais e depararam com expressões mais terríveis ainda, e nem um pouco felizes. Rostos quase desesperados, como se as pessoas às quais pertencessem tivessem cometido, e também sofrido, coisas pavorosas.
A última figura era a mais interessante: uma mulher muito alta (de fato, todas as figuras do salão eram mais altas do que as pessoas do nosso mundo), vestida mais ricamente do que as outras, e com um olhar tão aterrador e soberbo que quase tirava o fôlego.
Apesar disso, era bela. Muitos anos depois, já velho, Digory chegou a dizer que nunca vira mulher mais bela em toda a sua vida. É preciso dizer, no entanto, que Polly, por sua vez, sempre afirmou não ter visto nela nada de especialmente bonito.
Depois da mulher, havia uma porção de cadeiras vazias, como se o salão tivesse sido projetado para um número bem maior de imagens.
– Daria um doce para saber a história que está por trás disso – falou Digory. – Vamos dar uma espiada naquela coisa no meio da sala.
A coisa não era propriamente uma mesa. Era uma coluna quadrada com um metro de altura; em cima ficava um pequeno arco dourado do qual pendia um pequeno sino de ouro; ao lado encontrava-se um martelinho de ouro.
– Estou pensando... estou pensando... – disse Digory.
– Acho que tem alguma coisa escrita aqui – interrompeu Polly, agachando-se e olhando para um canto da coluna.
– Puxa, é mesmo. Mas a gente não sabe ler a língua deles...
– Será que não? Tenho minhas dúvidas.
Ambos olharam com todos os olhos. Eram de fato estranhos os caracteres sulcados na pedra, mas então o inesperado aconteceu: embora o talhe dos caracteres não se alterasse, os dois perceberam que aos poucos, à medida que olhavam, iam tornando-se capazes de entendê-los. O encantamento começava a agir. Logo já sabiam o que estava escrito na coluna.
O estilo devia ser melhor, mas o sentido dos dizeres era o seguinte:
Ousado aventureiro, decida de uma vez:
Faça o sino vibrar e aguarde o perigo
Ou acabe louco de tanto pensar:
“Se eu tivesse tocado, o que teria acontecido?”
– Eu é que não entro nessa – disse Polly. – Não quero ver perigo nenhum.
– Não adianta, Polly, não está vendo que agora é tarde demais? já caímos na coisa. A gente vai passar a vida pensando o que teria acontecido se tivesse tocado o sino. Eu é que não quero ficar louco, pensando a vida inteira nisso. Eu, não!
– Não seja tão bobo. Que interesse pode ter o que teria acontecido?
– Quem chegou até este ponto, não tem mais saída: ou toca o sino ou fica maluco. É este o encantamento, você não entende? já estou ficando empolgado... encantado...
– Não estou sentindo nada – disse Polly, meio zangada. – E nem acredito na sua empolgação. É fita sua.
– É porque você é mulher. Mulher só quer saber de intriga e de fofoca sobre namoros.
– Você ficou igualzinho a seu tio quando disse isso.
– Por que está fugindo do assunto? Estávamos falando sobre...
– Você está falando igualzinho a um homem! – disse Polly, num tom de gente adulta. E acrescentou vivamente, no seu próprio tom: – E não vá dizer que eu também falo como uma mulher. Não vá bancar relógio de repetição.
– Nunca me passaria pela cabeça chamar de mulher uma garotinha como você – disse Digory com arrogância.
– Ah, quer dizer que eu sou uma garotinha?! – Polly agora estava mesmo furiosa. – Pois já não precisa se incomodar em acompanhar uma garotinha. Chega! Estou cheia deste lugar! E estou farta de você também... seu bestalhão... seu teimoso... burro!
– Nada disso! – gritou Digory, num tom ainda mais rude do que pretendia, pois acabara de ver Polly enfiando a mão no bolso para agarrar o anel amarelo.
De maneira nenhuma vou desculpar o que ele fez em seguida; só posso dizer que Digory se arrependeu muito depois. Antes que a mão de Polly chegasse ao bolso, ele agarrou-lhe o pulso, dando-lhe uma torcida. Defendendo-se da outra mão da menina com o cotovelo, pegou o martelinho e deu no sino de ouro uma bonita martelada. Depois soltou a pobre Polly e ficaram um olhando para o outro, respirando com dificuldade. Polly já começava a chorar, não de medo, nem mesmo de dor, mas de pura e forte raiva. Dentro de dois segundos, no entanto, os acontecimentos iam varrer de seus corações quaisquer ressentimentos.
Logo ao ser golpeado, o sino dera uma nota, a doce nota que se podia esperar de um sino de ouro. Mas o som, em vez de ir morrendo, continuou, e continuou mais forte. No fim de um minuto era duas vezes mais alto do que no início. Daí a pouco estava tão alto que eles (se, em vez de permanecerem de boca aberta, tivessem falado alguma coisa) não poderiam conversar. E o som foi ficando mais forte, mais forte, sempre a mesma nota, ao mesmo tempo suave e terrível. Por fim todo o ar contido no salão vibrava com o som, e podiam perceber que as pedras tremiam sob seus pés. Em seguida, um outro som entrou na sala, um barulho confuso e desastroso, como um trem ao longe, a princípio, depois como o baque de uma árvore caindo. Finalmente, com estardalhaço, uma boa parte do teto despencou no fim do salão; grandes blocos de alvenaria desmoronaram em volta deles; as paredes tremeram.
O ruído do sino parou. As nuvens de poeira sumiram. Tudo voltou à antiga quietude.
Nunca se descobriu se o desabamento do teto era devido a feitiçaria ou se o insuportável som do sino estava acima dos limites toleráveis por aquelas paredes vacilantes.
– Que tal?! Acho que agora você está satisfeito! – disse Polly, arquejante. – Bom... de qualquer jeito, já acabou.
E pensaram que tinha acabado mesmo; mas nunca estiveram tão enganados em toda a sua vida.

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